Série ‘Drácula’, na Netflix, começa bem, mas naufraga ao fim

A série evita a armadilha de agradar fãs puristas.


Por Folhapress Publicado 08/01/2020
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Reprodução (Divulgação)

Em 1965, ao topar voltar à fria pele do Conde Drácula sete anos após o sucesso de sua estreia no papel, Christopher Lee ficou incrédulo ao ler suas falas em “Drácula, o Príncipe das Trevas”.

O ator inglês fez o filme, mas negou-se a abrir a boca senão para mostrar os caninos. De alguma forma deu certo, e a produção lançada em 1966 foi um sucesso de público.

A indignação de Lee com o diálogo pedestre imprimiu-se na sua relação com o vampiro criado em 1897 por Bram Stoker, que encarnou por sete vezes na produtora britânica Hammer Films: ao fim de sua profícua vida de 93 anos, em 2015, ele se recusava até a autografar capas pretas.

Claes Bang não teve tal prerrogativa ao envergar o surrado manto do nobre transilvano.

Por contas imprecisas, Drácula foi levado às telas mais de 200 vezes desde que um obscuro filme húngaro o fez em 1921, um ano antes do clássico “Nosferatu”, a primeira adaptação do texto de Stoker.

Se isso foi bom ou ruim para a carreira do ator dinamarquês de 52 anos, conhecido por seu papel como o curador de museu em “The Square” é uma incógnita. Para quem o avalia nos três capítulos do “Drácula” revivido pela BBC e pela Netflix, nem tanto.

Bang é um achado como o vampiro. Pertence à linhagem de Lee, com quem guarda semelhança de presença física impressionante (tem 1,94 m, só 2 cm a menos que o britânico), e imprime uma tensão sexual predatória a cada olhar.
Suas falas, ao contrário do que aconteceu com o antecessor, não são tanto o problema, em especial no quase perfeito primeiro episódio.

Trazem um conde ainda envelhecido curtindo sua condição e isolamento: “As pessoas daqui não têm sabor”.

Quando é chamado de monstro pelo inglês que o visita para fechar negócios imobiliários em Londres, única parte do roteiro próxima do texto clássico de Stoker, responde: “E você é um advogado. Ninguém é perfeito”.

A série evita a armadilha de agradar fãs puristas. Para tanto, a primeira versão para TV da BBC, de 1977, basta. Já a de Francis Ford Coppola (1992) é uma obra brilhante por diversos motivos, incluindo o conde de Gary Oldman, mas o prólogo que dá a ele uma motivação amorosa subverte um texto de resto fiel ao original.

Criada pelos autores de “Doctor Who” e “Sherlock”, da mesma BBC, “Drácula” também pula as associações com a figura histórica de quem Stoker roubou o nome e a fama de cruel ao compor o vampiro, o príncipe Vlad 3º Drácula, da Valáquia (c. 1431-1476).

O arco narrativo de Harker ganha dramaticidade e surge a hoje obrigatória antagonista feminina poderosa: a irmã Agatha, personagem pontual no livro que aqui vira uma freira “hardcore”, se há algo assim.

E ela tem o sobrenome Van Helsing, personificando o papel reservado nas telas a sábios anciãos, embora mais como uma novata em aprendizado acerca do adversário.

Mais interessante ainda, Bang é um Drácula incerto de seus limites. Como o original não trazia a visão do vampiro, salvo por falas indiretas, essa é uma liberdade fundamental para a perenidade do personagem: cada adaptação do conde traz um tanto de seu tempo para a trama, e incerteza é uma face do século 21.

Outros personagens não têm tal sorte, em especial as mulheres. O caso mais grave é o de Lucy Westenra, punida no século 19 como sonhadora ingênua no livro e aqui, como uma baladeira entediada em plena Londres de 2020.

Pois é, isso é um spoiler. Após a ótima estreia, na qual até o castelo em que “Nosferatu” foi filmado na Eslováquia é locação e os tais valores de produção abundam, a coisa degringola no segundo capítulo, que traz outro trecho lateral do cânone: a viagem de Drácula para a Inglaterra.

Remetendo a “Sherlock”, os autores fazem um pastiche de Agatha Christie, no qual o culpado é conhecido. Serve para apreciar Bang, mas só –e o final, no qual seu caixão repousa no fundo do mar por 123 anos, é desastroso.

Já o terceiro episódio é uma sucessão de soluções arbitrárias e a ironia fina do conde se transmuta em piadinhas tolas sobre geladeiras e o Tinder.

Lee viveu essa atualização em duas bombas da Hammer dos anos 1970 e, com razão, pendurou a capa. Cinema também é escapismo: os melhores Dráculas mantiveram o elemento gótico, um lugar de deslocamento para a audiência.

O que mata a série é o constrangedor epílogo, em que os produtores correm para negar o caráter bissexual da predação deste conde, surge uma explicação psicanalítica de boteco para questões fulcrais do vampirismo e ocorre a bizarra reviravolta final.

Drácula já pode retornar à tumba. Se há algo certo, afinal, é que ele voltará um dia.

GALERIA DE DRÁCULAS
Max Schreck
Em “Nosferatu” (F.W. Murnau, 1922), o alemão criou o mais aterrador Drácula, com nome alterado por questões de direitos autorais

Bela Lugosi
Em “Drácula” (Tod Browning, 1931), o húngaro criou a figura mais popular do conde, e estabeleceu o “padrão vampiro”

Christopher Lee
A partir do “Drácula” de 1958 (Terence Fisher), o britânico injetou sexualidade e agressividade na persona aristocrática de Lugosi

Frank Langella
No “Drácula” de 1979 (John Badham), o conde vira abertamente um imigrante sedutor e subversivo, baseado em uma peça

Klaus Kinski
A releitura de “Nosferatu” (Werner Herzog, 1979) tem o obsessivo ator alemão em uma performance angustiante e melancólica

Gary Oldman
Em “Drácula de Bram Stoker” (Francis Ford Coppola, 1992), o britânico transita de idoso a dândi, passando por monstro, motivado pelo amor

Luke Evans
Em “Drácula, a História Não Contada” (Gary Shore, 2014), o britânico é soterrado pelo ritmo de videogame imposto na trama