Entenda como ‘Samba’, novela iraquiana com nudez e Carnaval, imita o Brasil

A série estreou em 2011 no canal Al Sharqiya como parte da programação especial de ramadã, o mês sagrado do islã.


Por Folhapress Publicado 17/03/2022
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Reprodução: Divulgação

Nas últimas décadas, o público noveleiro se divertiu às custas de estereótipos sobre culturas que, vistas do Brasil, podem parecer extravagantes. Foi o caso de “O Clone” e “Caminho das Índias“, de Glória Perez. Pois bem, esse espelho tem um outro lado: a novela iraquiana “Samba“.


A série estreou em 2011 no canal Al Sharqiya como parte da programação especial de ramadã, o mês sagrado do islã. Tradicionalmente, muçulmanos passam o dia em jejum durante esse período. É também comum que as famílias se reúnam para assistir às estreias das novelas. “Samba”, porém, passou completamente batida no Brasil. Até que, nesta semana, o trailer começou a circular pelas redes sociais–e foi imediatamente transformado em um clássico cult.


A série trata, basicamente, de um mafioso apaixonado por uma mulher no Rio. Eles são interpretados por dois grandes artistas iraquianos, o ator Ayad Radhi e a cantora Dali. É uma comédia romântica musical em que cada episódio mostra uma abordagem fracassada do bandido. Apesar de falarem em árabe, todos os personagens são brasileiros e não há menções ao Iraque.


A primeira pessoa a falar sobre a novela foi o jornalista Andrey Raychtock, que se deparou por acaso com a pérola enquanto navegava pela internet profunda. Usuários da rede ficaram alucinados com o vídeo, que tem um pouco de tudo. Um gol do Flamengo celebrado por torcedores vestindo a camisa da seleção. Um homem batendo com um taco de sinuca em um traficante armado. Um ator que se parece com uma versão cinquentona do Agostinho Carrara, personagem de “A Grande Família”. Uma atriz a cara da comediante Dani Calabresa. E, é claro, as obrigatórias tomadas aéreas do Cristo Redentor.


Fora o trailer, uma outra razão para o entusiasmo com a descoberta foi o fato de que o brasileiro Edmundo Albrecht –celebrado pelo papel da criança espevitada Matraca na TV Globinho– trabalhou na produção de “Samba” e chegou inclusive a fazer o papel de chefe do tráfico. Em uma entrevista à Folha, disse que foi um dos projetos mais importantes de sua carreira.


Albrecht chegou à novela um pouco por acaso. Tinha acabado de se formar em cinema quando sua amiga Rachel Nahon telefonou com uma oportunidade de trabalho. O diretor iraquiano Ali Abu Khumra estava na loja de antiguidades dela, no Rio, procurando um local para filmar. Nahon ficou sabendo que Abu Khumra precisava de ajuda para produzir a novela, deu algumas sugestões de como economizar com coisas como bufê e camarins, e acabou contratada no ato.


A princípio, Albrecht ia apenas alugar equipamentos para os iraquianos, que trabalhavam para uma produtora dos Emirados Árabes chamada Etana. Mas virou produtor também. “Quando eu vi, estava dando R$ 50 para uma pessoa na rua para usar a bicicleta dela em uma cena”, diz. A dupla foi responsável por boa parte da logística da equipe árabe no Brasil durante o que Albrecht descreve como “os 15 dias mais loucos da minha vida”. “O roteiro era em árabe, a gente negociava em inglês, nosso time local falava em português. Era praticamente a Torre de Babel.”


Já se passaram mais de dez anos, mas Nahon se lembra bem das cenas que produziu –apesar de nunca ter visto a série, que ainda não foi legendada nem dublada. Ela conta, por exemplo, que um dia seu time foi filmar com um carro de época e armas cenográficas na Tijuca. Era uma cena de briga, com direito a garrafas quebradas e uma grua montada em um veículo. “De repente, veio um policial atrás da gente, e até explicar para ele que a gente estava fazendo uma série árabe…”


Outro momento marcante, diz, foi a filmagem na Cinelândia com sambistas e passistas. Nahon afirma que teve que arranjar cem figurantes de um dia para outro e comprar figurino no mercadão do Saara para fingir que era Carnaval. “A gente jogando confete, um monte de gente que não se conhecia sambando junto, isso para mim é o Rio. E é uma coisa que nunca mais vai acontecer”, conta.


Nahon e Albrecht comentam aqueles dias com carinho e falam de amizades travadas para toda a vida. Albrecht chegou a visitar os produtores em Dubai, inclusive. A experiência de produzir a série transformou o ex-ator mirim em um empresário do ramo audiovisual. Ele montou a produtora Film In Rio, especializada em trazer equipes para filmar dentro da cidade.


O iraquiano Ali Abu Khumra tem também ótimas lembranças do seu trabalho no Brasil. Ao saber da reportagem sobre a novela, telefonou para este jornalista diretamente da Turquia, às 2h da madrugada no horário local. Tinha acabado de encerrar as gravações de outro projeto e queria conversar.


Abu Khumra diz que a novela “Samba” foi uma entre tantas de suas produções no exterior. Tinha acabado de ir à Índia, antes de viajar para o Brasil. Não é tão comum que novelas árabes sejam gravadas fora. O típico, na verdade, são as produções de época ambientadas no Oriente Médio.


“Estávamos buscando algo novo, queríamos mostrar uma cultura diferente para o nosso público”, diz sobre o Brasil –que descreve como um lugar exótico. Abu Khumra fala com entusiasmo sobre o samba, a cantoria, a dança, as fantasias. Como talvez um roteirista brasileiro fale sobre o Marrocos ou a Índia ao escrever uma novela que se passa por lá. “Na televisão, ouvimos dizer que o Brasil é perigoso, mas decidimos mostrar uma realidade totalmente diferente”, afirma. A novela chegou a liderar a audiência iraquiana no ramadã de 2011, segundo Abu Khumra.


A série foi filmada no Rio por quatro meses. Apenas a equipe da direção era iraquiana. O restante eram brasileiros, como Nahum e Albrecht. Andre Skowronski, da exportadora de fantasias Brazil Carnival Shop, também ajudou. Diz, por exemplo, que negociou com a escola de samba União da Ilha para trazer passistas para uma cena. “Algumas das mulheres tiveram que ser cobertas, o que acho que nunca aconteceu na história do Brasil. Não podia aparecer nada. Por sorte, a escola tinha feito um enredo com uns bichos. Você vê as passistas com roupa de abelha, de minhoca.”


“Tive outros trabalhos, mas essa experiência foi única”, o produtor Albrecht diz. “Eles eram extremamente competentes. Eu tinha uns três anos de formado, era novo, e me vi produzindo cenas de troca de tiros. “Mas nunca imaginei que estaria aqui, dez anos depois, dando uma entrevista sobre isso…”