‘Barbie’ coroa onda de filmes de brinquedos e marcas, que vendem ingressos e produtos

Vinte e seis anos depois, Hollywood parece ter entendido o verso chiclete, e tem preenchido seus filmes com o material sintético.


Por Folhapress Publicado 11/07/2023
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Reprodução: Pixabay

Vida em plástico é fantástico, já dizia a música não oficial sobre a boneca mais famosa do mundo, lançada pelo grupo Aqua em 1997, quando a Barbie ainda era a patricinha mais cobiçada das lojas de brinquedo. Vinte e seis anos depois, Hollywood parece ter entendido o verso chiclete, e tem preenchido seus filmes com o material sintético.


Não literalmente -na verdade, é justamente o oposto. O que era plástico tem virado carne e osso nas telas, como atesta “Barbie”, o lançamento cinematográfico mais comentado do ano e que estreia no Brasil em 20 de julho.


Dirigido por Greta Gerwig, o longa coroa uma tendência que vem ganhando força na indústria nos últimos anos, com cada vez mais estúdios pondo histórias sobre brinquedos na linha de produção. No exemplo mais cor-de-rosa dessa onda, Margot Robbie irá vestir os saltos altíssimos da boneca loira e Ryan Gosling, as camisas estampadas justinhas de Ken.


E não foram apenas os brinquedos que saíram da caixa rumo aos cinemas. Produtos mais adultos se juntam a eles para ganhar longas próprios, de salgadinhos a tênis. Essas tramas ou narram suas origens mercadológicas ou criam um mundo de fantasia em que objetos inanimados ganham vida.


No caso de “Barbie”, há uma mistura das duas fórmulas. Por um lado, o projeto vai levar o espectador para dentro de uma Casa dos Sonhos e pôr os bonecos para interagir, mas, por outro, terá a protagonista conversando com o CEO da Mattel.


Uma análise mais atenta à ficha de produção, aliás, revela que a fabricante ajudou a bancar o filme da Warner Bros., por meio de seu braço cinematográfico pouco conhecido, a Mattel Films. Se antes ele se dedicava a animações bobinhas, como “Barbie e o Portal Secreto”, agora investe em blockbusters de pretensões grandiosas -as projeções e vendas antecipadas de ingressos indicam que “Barbie” será a grande sensação do verão americano.


Na concorrente Hasbro, a coisa não é tão diferente. Ela é dona do estúdio Entertainment One e passou por reformulação semelhante, abrindo espaço, em meio aos desenhos infantis, para se associar a estúdios maiores e levar seus brinquedos para produções de peso.


São dela, por exemplo, os recentes “Transformers: O Despertar das Feras”, baseado nos bonecos de ação lançados no mercado americano em 1984, e “Dungeons & Dragons: Honra entre Rebeldes”, inspirado no popular jogo de RPG homônimo.


“Há uma nostalgia por trás disso. Se você estiver na minha faixa etária, provavelmente brincou de Barbie, Dungeons & Dragons e Transformers quando criança. São brinquedos que remetem à infância e nos apegamos a isso. É animador vê-los nesses mundos que já conhecemos, mas na tela grande”, diz Steven Caple Jr., diretor do último “Transformers”, a oitava maior bilheteria do ano até aqui.


Entre os brinquedos da Hasbro que devem ganhar longas estão ainda os bonecos G.I. Joe e Power Rangers, a massinha Play-Doh, o bichinho Furby, os jogos de tabuleiro Clue e Monopoly e os brinquedos giratórios Beyblade.


Já na Mattel, os planos incluem um live-action dos carrinhos Hot Wheels, que tem a produtora de J.J. Abrams no banco de passageiro, um longa da boneca Polly Pocket, com roteiro e direção de Lena Dunham e Lily Collins como a loira em miniatura, e uma nova aventura dos Mestres do Universo, com Kyle Allen como He-Man.


Os carrinhos Matchbox, as bonecas American Girl, o dinossauro roxo Barney -com produção de Daniel Kaluuya-, os robôs lutadores Rock ‘Em Sock ‘Em -com Vin Diesel à frente- e até a Bola 8 Mágica e as cartas de Uno completam o arsenal da empresa. São 13 longas anunciados e 45 em desenvolvimento.


Para além do fator nostálgico, que chama público para as salas de cinema e agrada aos executivos de Hollywood, há uma via de mão dupla que também interessa às fabricantes. Por um lado, elas diversificam sua carteira de investimentos, ganhando um dinheiro extra no audiovisual.


Por outro, bombam as vendas de produtos importantes da casa, agregando valor a eles na hora do licenciamento -a Barbie, afinal, é terceirizada para fabricantes de roupas, acessórios, materiais escolares, produtos de higiene, doces e por aí vai.


Com o filme, a boneca se mantém sob os holofotes e se atualiza diante de uma geração que pode não associá-la a temas caros hoje em dia, como o feminismo, mas certamente vê em Margot Robbie, atriz que se tornou produtora poderosa em Hollywood, um ícone de empoderamento.


“Estratégias de construção de uma marca estão em todos os segmentos da economia criativa. Não podia ser diferente no cinema, a ferramenta mais poderosa de encantamento que temos. Essa onda é uma jogada muito contemporânea, muito clara de formação de valor”, diz Koca Machado, professora da Escola Superior de Propaganda e Marketing, a ESPM, e sócia da agência Grupo Sal.


No Google, uma busca rápida mostra que termos como “boneca Barbie” ou “Barbie doll”, em inglês, tiveram picos nos dias subsequentes à divulgação dos dois trailers do filme, em dezembro e maio. Versões da loira à imagem de Robbie, lançadas no mês passado, esgotaram rapidamente nos Estados Unidos e inflaram preços no mercado paralelo.


Em queda desde o início da década passada, as vendas de produtos Barbie, principal vitrine da Mattel, voltaram a crescer recentemente após o lançamento de versões que abraçaram a diversidade, de bonecas em cadeiras de rodas àquelas com síndrome de Down, e se mantêm fortes agora, com um filme que funciona, indiretamente, como peça publicitária caríssima, orçada em US$ 100 milhões -cerca de R$ 480 milhões.


“A imersão na marca é tudo hoje”, disse Richard Dickson, chefe de operações da Mattel, à revista americana New Yorker, ao falar sobre seus sonhos hollywoodianos. Ele ofereceu um tour pela empresa a Robbie quando ela demonstrou interesse em levar a boneca às telas.


“Minha tese quando assumi era que precisávamos fazer uma transição de empresa de brinquedos, uma fabricante de itens, para uma empresa de propriedade intelectual, uma gerenciadora de franquias”, acrescentou o CEO, Ynon Kreiz, que entrou na companhia em 2018 determinado a recuperar personagens que haviam sido licenciados para os mais variados estúdios, que os gravariam sem a participação da Mattel.


E essas propriedades, ressalta a professora Koca Machado, devem ser polidas e adaptadas aos novos tempos. Daí o tom quase de deboche do novo filme, que vai tirar sarro dos pés sempre arqueados da personagem, do mundo artificialmente cor-de-rosa em que vive e da metrossexualidade de Ken.


“A Barbie foi uma torturadora de meninas durante o século 20, porque o padrão dela não existe. Então ela entrou no século 21 precisando se transformar. É natural que o filme tenha certa ironia, para ressignificar a boneca”, diz ela.


Apesar da onipresença de marcas no cinema e na televisão -a indústria tabagista teve uma relacionamento íntimo com Hollywood e seus personagens em décadas passadas e até o inocente E.T.

de Steven Spielberg persegue uma trilha de chocolatinhos da Hershey’s em seu filme-, Machado explica que o método agora é mais sutil.


De acordo com ela, o mercado publicitário é regido por uma pirâmide a fim de chegar até o consumidor.

Nos últimos anos, porém, os pilares que a sustentam foram repensados, justamente para abarcar novas estratégias como a dos filmes de produtos. Se antes o cinema se concentrava no “product placement”, como o de “E.T.: O Extraterrestre” ou os brinquedos reais em “Toy Story”, agora parece mais interessado no “branded entertainment” -entretenimento de marca, em português.


É um passo muito além, ela explica, já que substituir o discurso imperativo do “compre” é mais eficaz para o público sensível e crítico de hoje, driblando ainda restrições que cada país impõe à publicidade, em especial àquela direcionada às crianças.


“As marcas precisam formar novos públicos. Como você faz isso com um jogo da Nintendo? Você vai com força para o entretenimento. O Mario não fala para a plateia comprar seu jogo, mas durante a aventura ele vai compartilhar os valores da marca com você”, diz Machado sobre “Super Mario Bros.: O Filme”, maior bilheteria do ano até aqui, que fisgou fãs nostálgicos e também os pequenos, que aparecem aos montes nas redes sociais cantando uma das músicas do longa a plenos pulmões.


Essa comunicação sem obstáculos deve gerar preocupação em órgãos de regulamentação e associações dedicadas à infância conforme a onda de filmes de brinquedos se consolida. Esta é a avaliação de Maria Belintane, especialista em educação financeira e consumo consciente infantil.


“Não é questão de proibir a criança de vivenciar essa onda ou de brincar com a Barbie e o Ken. Mas precisamos de brinquedos que estimulem o faz de conta, não que reforcem estereótipos de comportamento, consumismo e frivolidade. A personificação desses bonecos, com os atores, é um entrave ao desenvolvimento se a criança não tiver um contraponto da família e da escola. É preciso estimular a criação de uma identidade que vá além do brinquedo”, diz.


Adultos, porém, também estão sendo expostos a essa vitrine de filmes sobre produtos, em dramas mais densos ou comédias, como é o caso de “The Beanie Bubble”, que o Apple TV+ lança no dia 28 de julho. Também ambientado no setor dos brinquedos, o filme mostra como as pelúcias Beanie Babies foram mania mundial e também apela à nostalgia da geração noventista.


No futuro, “Unfrosted: The Pop-Tart Story” vai falar sobre os bolinhos açucarados amplamente consumidos nos Estados Unidos, enquanto “Madden”, com direção de David O. Russell, vai falar da criação do game homônimo de futebol americano.


Distante da Hasbro e da Mattel, outras casas de brinquedos que em breve vão embalar seus produtos em celulóide incluem a Funko, dos colecionáveis cabeçudos que viraram moda, o jogo “Minecraft”, os bichinhos encantados My Little Pony e Hello Kitty e, claro, a Lego, que já lucrou milhões e emplacou seus blocos de montar em várias cartinhas para o Papai Noel desde que lançou “Uma Aventura Lego”, em 2014. Outros três filmes aclamados chegaram aos cinemas desde então e novas aventuras estão nos planos.


Mas esses filmes são arte ou peça publicitária? Não há dúvidas sobre a segunda parte, basta ver a quantidade de bonecas Barbie ou kits de Lego lançados na esteira de seus filmes. Mas se o Oscar serve como termômetro, eles continuam sendo cinema. A primeira animação dos blocos de montar foi indicada a uma estatueta e, fora do circuito comercial, o prestigiado festival de Annecy, na França, já exibiu um longa da concorrente, a Playmobil.


Parece que ninguém vai frear Barbie e seu Corvette cor-de-rosa.


BARBIE
Quando Estreia em 20 de julho, nos cinemas.
Ingressos à venda
Classificação Não informada
Elenco Margot Robbie, Ryan Gosling e Kate McKinnon
Produção EUA, Reino Unido, 2023
Direção Greta Gerwig