Alexandre Nero lança disco com Elza, Milton e diz que ator e músico ‘são um só’

Quem passa o olho por ela, portanto, nem desconfia que é o álbum de um artista que já havia declarado para si mesmo sua aposentadoria como músico e compositor.


Por Folhapress Publicado 29/04/2022
Ouvir: 00:00
Reprodução: Instagram

Uma parceria com Aldir Blanc, participações de Milton Nascimento e Elza Soares, cordas de orquestra russa. A ficha técnica de “Quarto, Suítes, Alguns Cômodos e Outros Nem Tanto”, do selo Risco, disco de Alexandre Nero lançado agora, impõe respeito. Quem passa o olho por ela, portanto, nem desconfia que é o álbum de um artista que já havia declarado para si mesmo sua aposentadoria como músico e compositor.


Contexto: antes de ser um consagrado ator de novelas –”ou melhor, um ator que está em novelas”, ele mesmo se corrige–, Nero era um músico bem-sucedido na cena curitibana, em bandas como Maquinaíma e Denorex 80. Tocando em paralelo à carreira no teatro, chegava a ouvir: “Para com isso, cara, você não é ator, é músico”.


Até que, na TV Globo, com a fama e o reconhecimento vindos em personagens como Stênio de “Salve Jorge” e o Comendador de “Império”, o discurso virou. Ele passou a ouvir, sobretudo no silêncio das pessoas sobre seu trabalho como cantor e compositor: “Para com isso, cara, você não é músico, é ator”.


“Lancei discos e ninguém deu bola”, lembra Nero. “Meio que me desapontei: ‘Ninguém tá nem aí’.” Foi quando ele chegou a acreditar que havia abandonado a carreira. “Pensei: ‘Deu pra mim’. Mas a gente não vira músico e não deixa de ser músico da noite para o dia. De qualquer forma, eu estava de mal.”


“Quarto, Suítes, Alguns Cômodos e Outros Nem Tanto” encerra esse período “de mal” –mais precisamente, um hiato de 11 anos desde seu disco anterior, “Vendo Amor”. Suas pazes com a música vieram exatamente num momento em que ele estava mergulhado em seu ofício de ator, na gravação de “Onde Nascem os Fortes”, no sertão de Cariri, em 2018. Nos longos tempos mortos entre as filmagens, inspirado pelo cenário árido, ele compôs “Lajedo do Sertão”, uma das faixas do novo trabalho.


No silêncio do sertão, portanto, Nero rompeu seu silêncio como compositor para dar início a um álbum sobre… o silêncio. Ou melhor, os silêncios. Eles aparecem em versos das canções (como “Na fermata dos silêncios/ Que existem nos carnavais”) e nos arranjos.


“A gente ainda cortou muito silêncio. Era pra ter mais. Eu queria radicalmente o silêncio, músicas quase experimentais”, conta Nero, que pensou a sonoridade do disco ao lado do produtor, compositor e pianista Antonio Saraiva. “É um disco de canções, mas seus arranjos lembram muito o erudito, tem umas coisas meio johncageianas”, diz em referência ao compositor John Cage, autor da famosa “4’33”, peça que consiste em quatro minutos e 33 segundos de silêncio.


Mais do que uma escolha estética, o silêncio que dá o tom geral das 11 canções do álbum foi uma escolha filosófica –e em certa medida, política, levando-se em conta que ele começa a ser feito no ano da eleição de Bolsonaro e que sua construção atravessa seu governo.


“O silêncio incomoda. As pessoas têm mais medo do silêncio do que de uma ditadura”, diz Nero. “As pessoas não querem tocar na tristeza, na solidão. A gente vive num mundo eufórico, up, prozaquiano. Mas o luto é fundamental, porque é ele que aponta pra esperança.”


Como ele canta a certa altura, “Não me leve a mal/ Foi em pleno carnaval/ Cantando músicas tristes/ Que me vi feliz”. Ou, dando voz aos versos de Aldir Blanc, “É preciso inventar um lado de fora/ É preciso ventar”.


“Virulência”, parceria de Nero com Blanc, abre o disco. Os dois se aproximaram nos últimos anos, a princípio motivados por um espetáculo que o curitibano queria fazer sobre a obra do carioca. Veio a intenção de parceria. Ao longo da troca de emails que se tornou hábito entre os dois, o poeta escreveu versos que, após sua morte, por Covid, em maio de 2020, Nero musicou com o auxílio de Antonio Saraiva.


O primeiro verso da canção fala de um vírus que “nos virou do avesso”. É uma referência ao coronavírus, mas também não é, afirma Nero. “O sertão do disco nunca foi só o sertão, assim como sua Nossa Senhora de Copacabana (que dá nome a uma das canções) nunca foi só uma rua. Nossa Senhora de Copacabana é o Brasil. Da mesma forma, o vírus nunca foi só o coronavírus.”


Elza Soares e Milton Nascimento completam a trindade de gigantes do álbum. Nero conhecia ambos e costumava brincar com eles que um dia gravariam juntos. Quando o disco se desenhou, ele tomou coragem e fez o convite. “Por que chamei os dois? Porque sou megalomaníaco”, diz, em tom de brincadeira. “São duas das maiores vozes do planeta. A aparição deles no disco é num lugar de excelência. Não é um mero ‘feat’, não me ponho cantando de igual para igual com eles”.


Milton está em “Em Guerra de Cegos”, na qual entra de forma surpreendente –só aos dois minutos da faixa, num verso que começa na voz de Nero e termina na do mineiro. “A aparição do Milton na canção pra mim é tipo o Marlon Brando em ‘Apocalypse Now’. Ele entra e sai, não precisa ficar ali. E tudo muda. O mundo para para ele cantar”, resume Nero.


Para Elza, Nero escolheu uma canção mais com cara de “A Mulher do Fim do Mundo” do que de “Mulata Assanhada”. “Fomos na mais cabeluda. Não tem refrãozinho, não é música de novela”, diz o compositor, referindo-se a “Miseráveis”, na qual ela canta versos como “Masmorra nas minas, nas monas, nos manos/ Nos mascates, mendigos, comuns/ Macunaímas, Pixotes, Mussuns”.


A geografia do álbum, portanto, cobre do submundo urbano de “Miseráveis” ao sertão de “Lajedo do Sertão”, da vastidão das calçadas de “Nossa Senhora de Copacabana” à síntese microscópica de “A Partícula” –esta, parceria com João Cavalcanti sobre o milagre da geração da vida, inspirada na experiência da paternidade. E, musicalmente, Nero mira ainda além: “Consigo enxergar ali minhas referências de Clube da Esquina, Tom Jobim, Béla Bartók, rock progressivo, Stravinsky.”


“Acho relevante o fato de ter gravado esse disco dessa forma: um trabalho de um ator famoso da TV lançado por um selo independente, com músicas que não são fáceis”, afirma Nero. “Porque, como canta Gilberto Gil, ‘o povo sabe o que quer, mas o povo também quer o que não sabe’.”


A percepção de quem insiste em vê-lo unicamente como um ator ainda o chateia, mas não o perturba. “Claro que é uma tristeza. Perguntam como eu separo o ator do músico. Mas para mim os dois estão juntos, são um só. As pessoas não entendem assim. Mas isso é com elas.”

QUARTO, SUÍTES, ALGUNS CÔMODOS E OUTROS NEM TANTO
Onde Disponível nas plataformas digitais
Autor Alexandre Nero
Gravadora Selo Risco