Emicida diz que não ficou famoso para ‘comprar carros e fazer selfies’

Depois de quase 20 anos, ele olha para trás com alegria e se sentindo completo: "Já lancei um livro, plantei uma árvore e fiz duas filhas".


Por Folhapress Publicado 09/09/2019
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Reprodução (Divulgação)

 “Gostaria de ter tido um cara que falasse para mim que ‘vai ficar tudo bem'”, diz Emicida, 34.

O cantor batizado de Leandro Roque de Oliveira perdeu o pai muito cedo, e passou parte da juventude sem muito contato com a mãe, dona Jacira.

Moradores do bairro paulistano Vila Zilda (Tremembé), eles viviam com o mínimo -“e quando tínhamos pouca comida, minha mãe dividia igual para todo mundo. ‘Se vai passar fome, vai passar fome no mesmo tanto'”, lembrou o cantor em evento na Casa 1 em São Paulo.

Fora de casa não era diferente. O jovem Emicida “fazia bagunça” na escola de propósito, para a professora o colocar para fora. “Porque quando ela nos colocava para fora, nós íamos para o banheiro matar rato, de tanto que tinha. Era nosso esporte, tipo um hockey. Que a National Geographic não nos ouça”.

Segundo o rapper, o cenário foi a “melhor escola” que ele poderia ter tido, e por isso ele valoriza tanto seu sucesso atual. “Minha vitória não é do cara que nasceu num barraco de madeira e agora é campeão, ‘e vamos comprar carros e fazer selfies’. Isso para mim é mais próximo da derrota”.

Muito antes de chegar ao topo das paradas, Emicida tinha bastante medo dos palcos, mas já conversava com seu irmão sobre se tornar um músico, ao mesmo tempo que lidava com o conflito de precisar ter um trabalho como “plano B”. A música deu certo e, ele lembra, até hoje sua carteira nunca foi assinada.

“Eu falava pro meu irmão: ‘A gente vai fazer um CD, vou vender por R$ 2, e a capinha vai ser desenhada na mão. E vai vender pra caramba”, lembra. A oportunidade chegou sem aviso prévio: “Um dia eu estava voltando de ônibus, tristão, me perguntando se eu deveria continuar, e meu telefone tocou.

Era o KL Jay dos Racionais. Ele falou: ‘Emicida, você gostaria de abrir o show dos Racionais?’. Se liga na grandeza do KL Jay, que perguntou se eu ‘gostaria’. Naquele momento, ele me ensinou o que eu quero ser até o final da minha vida”.

Depois de quase 20 anos, ele olha para trás com alegria e se sentindo completo: “Já lancei um livro, plantei uma árvore e fiz duas filhas”. ‘SEM CHÃO NINGUÉM SALTA’

Emicida conta que sua mãe tinha receio da entrada do filho no mundo da música, uma vez que seu pai tentou por muito tempo ser DJ, sem sucesso. Nas palavras do cantor, seu pai “morreu frustrado”, e isso fez com que a mãe quisesse distância entre o filho e a música. Só foi aceitar quando percebeu a seriedade e empenho dele no ramo.

Apesar de não apoiar a música a princípio, a mãe de Emicida sempre procurou dar o melhor para os filhos. A família viveu boa parte da vida em um barraco de um cômodo, com chão batido e goteiras. Na casa ao lado, morava um dos tios do cantor, que segundo ele, “espancava a mulher todos os dias”. 

“Para a gente, isso era parte da rotina. Era ‘normal’. Até que um dia esse cara bateu tanto na mulher que ela fugiu da casa pelada. Nesse dia, minha mãe pegou nós quatro e disse que não ficaríamos lá”.

Deixando ego e orgulho de lado, dona Jacira levou os filhos para a casa da mãe, vó de Emicida, com quem ela era brigada. 

Na falta de referências masculinas, sua mãe foi essencial: “Ela arrumou um monte de casa para ir trabalhar e em paralelo, voltou a estudar. Um monte de homem lixo passou pela vida dela. E ela segurou as rédeas como ninguém. Quando as pessoas me elogiam, eu respondo: você não viu o que minha mãe fez. Ela conseguiu pavimentar um lugar de onde eu pudesse saltar. Sem chão, ninguém salta”. 

RACISMO E POLÍTICA
Emicida procura se blindar do preconceito no dia a dia. Fugindo de festas e grandes eventos, ele se mantém perto de pessoas cujas energias o fazem bem, o que o fez passar por “poucos” casos de racismo ao longo de sua vida, segundo ele mesmo diz.

Em um deles, que vivenciou ainda jovem, um vizinho o acusou indiretamente de ter roubado a sua casa. “‘Você não sabe quem foi não?’, ele me perguntou. Quando o cara foi embora eu me questionei: ‘Por que eu iria saber quem roubou a casa dele?”, lembra. “Eu sei que o racismo existe e essas pessoas estão aí, mas eu me conecto com o que me leva para cima. Crio um ambiente onde minha vitória seja inevitável”.

Frente a uma nova onda de racismo que ele diz perceber na política, o cantor afirma que o Brasil enfrenta uma guerra cultura, de “pessoas que falam que nazismo é de esquerda e que escravidão não foi tão ruim”. 

Na música lançada recentemente pelo cantor em parceria com Pabllo Vittar e Majur, “Amarelo”, ele fala um pouco sobre “esse momento triste que estamos vivendo na política brasileira, de discursos nojentos”. Segundo o cantor, os brasileiros estão confundindo força com violência, e “os homens não aprenderam a pedir socorro”.

“Mas nós vamos tomar nossa bandeira de volta. Acho que a gente tem que se apropriar desses símbolos, porque eles não são de direita ou de esquerda, são nossos. Se bem que a camisa da seleção pode até ficar”, brinca.

“A ignorância, se você deixar ela sozinha, cresce. A gente está no meio de uma guerra e não está em posição de vitória. Temos que nos organizar mais e mais. […] Temos uma força que às vezes a gente desconhece; que o mundo rouba de nós. Já tivemos vários discursos, mas acho que temos que partir para as ações”.