Como Susana Vieira virou a rainha dos memes com a aura de suas vilãs


Por Folhapress Publicado 27/01/2023
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Reprodução: Instagram

“Falei alguma coisa que vai me comprometer?”
É assim que Susana Vieira encerra a conversa em que reviu a carreira superlativa construída nas últimas seis décadas. Assim que chegou ao teatro onde recebeu a reportagem, ela pediu desculpas.


Primeiro, por ter se apresentado alguns minutos depois do combinado -“é que meu voo atrasou, e o aeroporto estava pior do que rodoviária”.


Depois, por estar cansada -“estou desde cedo fazendo aulas sobre indígenas, garimpeiros, para minha próxima novela, porque a Globo agora resolveu ajudar minorias”.


Mas logo tratou de esclarecer que não estava reclamando de nada -“tenho é que agradecer, a Globo tem mandado tanta gente embora que, se pedissem para eu fazer uma faxina no escritório do Roberto Marinho, eu faria”.


Susana se define como uma “operária” da TV, disposta a interpretar o personagem que a emissora quiser. No entanto, a maioria de seus papéis, ou os mais marcantes ao menos, guardam semelhanças com ela própria. São mulheres exuberantes e aguerridas.


É o caso de Branca Letícia de Barros Mota, de “Por Amor”, que Susana diz, sem pestanejar, ser a sua personagem favorita na história. Branca tinha como sua característica mais marcante a falta de papas na língua. Era, como Susana, uma diva à própria maneira.


Shirley Valentine, a personagem que dá nome à peça que traz a atriz a São Paulo, é de certa forma um ponto fora da curva. De laço na cabeça e um vestido que mais parece “uma toalha de mesa”, como Susana define, Shirley é “uma mulher meio breguinha” e “sem autoestima”.


No monólogo, escrito pelo britânico Willy Russel e adaptado por Miguel Falabella, Shirley vê numa crise conjugal a oportunidade de realizar o sonho antigo de viajar à Grécia e então tem um vislumbre do que poderia estar vivendo, não fosse seu casamento.


A experiência com crises conjugais é um dos poucos pontos em comum entre Shirley e Susana. Para além dos namoros, a atriz se casou ao menos três vezes. O último matrimônio, com o policial militar Marcelo Silva, no final dos anos 2000, foi o mais conturbado.


Isso porque Silva, expulso de casa depois que Susana descobriu que era traída por ele, teria roubado da atriz joias e eletrodomésticos, além de ter arrombado seu cofre, feito desvios de sua conta bancária, ameaçado seus funcionários de morte e gravado um vídeo seu tomando banho, pelo qual pediu R$ 500 mil.


Foi este relacionamento tóxico, porém, que a fez se tornar uma das precursoras dos memes. Após romper a quarentena de meses dentro de casa contra os paparazzi, Susana foi entrevistada pelo extinto programa Pânico numa festa e, ao responder sobre como teria “dado a volta por cima”, criou um dos maiores memes da internet brasileira.


“Amor, olha para minha cara e vê se estou triste”, diz ela, refazendo e explicando o meme. “Olha minha beleza, olha minha pele. Meu cabelo? Oito mil reais. Era um megahair. Meu salário na Globo? Lá em cima. Um filho que é vice-presidente da Sony sabe onde? Em Miami. Uma casa de seis andares, quatro cachorros que me amam. Por que eu estaria triste?”


O relacionamento com Silva, que morreu depois de uma overdose poucos meses depois do rompimento com a atriz, gerou outro vídeo viral. “A pessoa era um demônio e morreu. Falei que foi Deus que o tirou da Terra. Ficou provado que, acima de mim, só Deus. Ninguém é mais poderoso do que Deus e eu”, diz Susana, explicando outro de seus memes mais memoráveis.


Dali em diante, não parou mais. Foi como se os fãs nas redes tivessem redescoberto Susana. Desde então, entrevistas antigas em que a atriz escancara níveis invejáveis de autoestima foram sendo resgatadas.


“Às vezes, me olho no espelho, quando vou tirar a maquiagem, e digo ‘meu Deus, como estou com a pele boa, como estou bonita’. Mas é o que estou sentindo. Não estou falando para levantar meu ego. Estou sozinha em casa. Tem quatro cachorros me esperando na cama só”, afirma.


Embora cada uma de suas respostas soe como um meme em potencial, Susana é mais do que o personagem cômico que viralizou nas redes sociais. Quem sublinha isso é Tony Ramos, um de seus colegas de trabalho mais longevos.


“Quando as pessoas veem a Susana comunicativa, podem se esquecer da espetacular atriz que ela é.

Ela vai de grandes românticas a vilãs absolutas, da mulher à irmã”, diz. “Susana não mascara sentimentos. Por emoção, não digo verter lágrimas. Emoção é quando todos os poros falam com a alma da personagem. Ela faz isso brilhantemente.”


A visão do ator faz coro à de Mauro Alencar, doutor em teledramaturgia pela Universidade de São Paulo que acaba de escrever uma biografia de Susana, prevista para ser lançada até o meio deste ano. Ele divide os papéis da atriz em dois núcleos -os que são mergulhados no romantismo, vistos com mais frequência no início de sua carreira, e os que têm como alicerce críticas sociais, que sobrevivem até hoje.


Alencar diz que as personagens de Susana alavancaram mudanças no papel da mulher. Ele dá como exemplo Cândida de Souza, de “Escalada”, folhetim de Lauro César Muniz que foi ao ar em 1975, no governo de Ernesto Geisel.


Cândida quer se divorciar, mas divórcio era um tema proibido pelos censores da ditadura militar. Para o especialista, a personagem teve um papel fundamental na legalização do divórcio, algo que viria a ocorrer dois anos depois.


Alencar, que também estudou a carreira de Susana para escrever o livro “A Hollywood Brasileira: Panorama da Telenovela no Brasil”, lembra ainda Claudia, de “Duas Vidas”, que foi ao ar em 1976 e 1977. Criação de Janet Clair, a personagem foi uma das primeiras mulheres na televisão brasileira a comandar uma grande empresa -uma gravadora inspirada na Som Livre, que a personagem assume após a morte do marido, que era o herdeiro da companhia.


Entre os mais de 80 personagens que a atriz viveu só na televisão, Alencar afirma ter receio de se esquecer de algum papel importante. Mas ele também menciona Veridiana Gurgel, que fazia críticas rechaçadas às empresas multinacionais em “Os Gigantes”. O folhetim, exibido em 1979, era tão incômodo aos censores da ditadura que levou à demissão de seu autor, Lauro César Muniz, da Globo.


Alencar lembra também Marina Steen -de “A Sucessora”, de 1978, escrita por Manoel Carlos-, em que Susana interpreta uma jovem pobre alçada a madame pelo casamento, além da babá Nice, de “Anjo Mau”, escrita por Maria Adelaide Amaral e exibida dois anos antes.


A partir da babá que é capaz de cometer qualquer atrocidade para crescer na vida, a trama discutia mobilidade social num dos períodos de maior pobreza do país, o que Susana voltou a fazer em “Senhora do Destino”, de Aguinaldo Silva.


Uma das primeiras a tirar o foco da riqueza da zona sul para explorar a miséria do Rio de Janeiro na zona norte, a novela foi exibida em 2004 e 2005, durante o primeiro governo de Lula, um momento de tentativa de revisão do país.


Dramaturgia à parte, Susana prefere não discutir política, numa postura diferente da que é adotada por boa parte dos notórios medalhões da Globo, como Regina Duarte e Cássia Kis, militantes de Bolsonaro, ou José de Abreu e Vera Holtz, defensores de Lula.


De camiseta verde e amarela estampada com o rosto do ex-juiz Sergio Moro, a atriz participou de manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff em 2016. Embora hoje prefira o silêncio, ela afirmou, em entrevistas nos últimos anos, que era contra a corrupção e o PT, mas que não fez campanha para Jair Bolsonaro nem apoiava seu governo.


“Tenho uma assessora de imprensa que sabe tudo o que eu posso ou não falar”, diz. “Pode dar um exemplo?”, o repórter questiona. “Não vou dar exemplo porque prefiro não tocar em assuntos que não são importantes hoje, que é o dia da minha peça. Isso é muito mais importante do que acontece em Brasília”, afirma a atriz.


“Tem medo de incomodar?”, o repórter volta a questionar. “Não é por isso. É porque estou aqui fazendo teatro, fazendo televisão, paguei uma passagem de avião, dei emprego para muita gente, então me sinto brasileira e orgulhosa. Quem não fizer seu trabalho lá em cima o problema é deles. O governo não ajuda a arte. Não tem um político que vai ao teatro, então a gente não depende deles. Pode entrar quem quiser lá. Eles não vão estragar o país. Enquanto a cultura e os artistas estiverem vivos, o Brasil vai continuar.”


Se depender de Susana, então, vai continuar por muito tempo. Sem planos para se aposentar, a atriz diz ter ciência de que, aos 80 anos de idade, completados em agosto do ano passado, dificilmente será chamada para protagonizar uma novela, o que ela atribui ao etarismo -nome bonito e pouco conhecido que se dá ao preconceito contra idosos. Mas ela garante, emendando um ponto de exclamação atrás do outro, que isso não a abala.


“O xingamento mais comum neste país, independentemente de brigas partidárias, é me chamar de velha. Acham que estão me ofendendo! Quem é o jovem desgraçado que ganha um prêmio Nobel? Quem vai parar na Academia Brasileira de Letras? É o pessoal da ‘Malhação’? Me chamar de velha escrota, perguntar se esta velha não morreu, é o maior xingamento. Mas não me ofende, porque estou velha, mas não me acho velha”, diz.


“Jovens são inexperientes, então os melhores papéis são da gente. O casal está lá, beijando, transando, texto para caramba, mas a gente entra em duas cenas e monta o capítulo”, ela acrescenta.


A idade de fato não parece ser um problema, mesmo somada à sua condição de saúde. Há sete anos, a atriz recebeu o diagnóstico de uma leucemia sem cura. A doença está sob controle, mas mudou sua rotina, principalmente na pandemia. Se sua imunidade cai, ela precisa voltar à quimioterapia. Por isso, ela diz não ir a festas, eventos e até ao teatro, se for para ficar na plateia.


Mas nos palcos nada é capaz de frear a atriz. Um dia depois desta entrevista, Susana caiu em um buraco e quebrou o pé esquerdo. Mesmo com uma bota ortopédica, manteve as três apresentações daquele final de semana. Disse que se apresentaria sentada, mas poucos minutos depois já estava de pé, cruzando o palco de uma ponta à outra, como se nada tivesse acontecido.


Ao retornar ao Rio de Janeiro, manteve ainda os ensaios para a próxima novela, “Terra Vermelha”, aquela que citou no início desta entrevista, sobre “agronegócio e o poder dos donos de terra”, escrita por Walcyr Carrasco e ainda sem previsão de estreia.


Depois de quase três anos presa em casa, agora Susana trabalha de segunda a segunda. Acorda cedo, assiste às aulas virtuais da Globo, vai para o estúdio depois do almoço e, às sextas-feiras, pega um voo para se apresentar em São Paulo. Com o pé quebrado. Mas nada disso importa, ela diz.


“Estava terminando o ano, com a Globo se desfazendo de parte do elenco, aí pensei ‘o que vou fazer agora?’. Não vou vender nada, porque não sei vender nada. Nem meu corpo. Não teria mais nada o que fazer da vida. Peguei todos os papéis -os que queria e os que não queria. Namorei quem quis e quem não quis. Mas eu tiro leite de pedra. Não fico sentada esperando.”