Bob Dylan ganha museu em sua homenagem e esnoba abertura com Patti Smith

É o Bob Dylan Center, BDC, que abre nesta terça-feira ao público após investimentos de US$ 10 milhões na construção do espaço.


Por Folhapress Publicado 10/05/2022
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Reprodução: Divulgação

Bob Dylan não deu as caras nos três dias de festa em sua homenagem, como esperado, mas como bem lembrou sua amiga Patti Smith o enigmático trovador de 80 anos está “por todo os lados”.


Especialmente em Tulsa, no estado interiorano de Oklahoma, o bardo americano surge no aeroporto, nos pontos de ônibus e nos postes de luz das calçadas, decorando propagandas que indicam a direção de Meca para seus fãs -um prédio de dois andares de tijolos aparentes, numa antiga fábrica de papel, num bairro revitalizado da cidade.


É o Bob Dylan Center, BDC, que abre nesta terça-feira ao público após investimentos de US$ 10 milhões na construção do espaço. O BDC é agora a casa dos arquivos pessoais do músico, vendidos há seis anos por cerca de US$ 20 milhões. Três noites de shows com Patti Smith, Mavis Staple e Elvis Costello marcaram as comemorações de abertura para convidados no final de semana.


O centro montou uma exposição com parte dos 100 mil itens da coleção, enquanto a maioria dos documentos e gravações ficará disponível a pesquisadores profissionais. O acesso a tamanho tesouro dylanesco vem causando ondas de revisionismo na obra do músico, primeiro a receber um Nobel de literatura, evento para o qual tampouco foi.


“Espero desesperadamente por essa onda”, disse Clinton Heylin, um dos mais respeitados biógrafos de Dylan e primeiro a ter acesso aos arquivos, em entrevista. O resultado está em seu nono livro sobre o poeta, “The Double Life of Bob Dylan” -lançado no ano passado pela editora Little Brown-, um catatau de mais de 500 páginas que ganhará um segundo volume em breve.


“Digo às pessoas desde 2016 que ‘não faz o menor sentido escrever um livro sobre Dylan sem ir a Tulsa’. É ridículo”, disse o britânico, que passou dez semanas nos arquivos. “Não conte a ninguém, mas toda hora eu me pegava dizendo ‘caramba, tinha entendido isso errado’.”


Steven Jenkins, diretor de programação do BDC, espera atrair uma nova geração de estudiosos para trazer mais pluralidade de interpretações. “Qual seria a graça de solucionar o enigma Dylan? Não se trata de definir nada. Acho que há mais aqui para aumentar o fascínio”, disse Jenkins.


O santo graal da exposição são três cadernetas que Dylan usou em 1974 para escrever as letras do álbum “Blood on the Tracks”. Sua letra é praticamente ilegível, mas o centro dá destaque às páginas que falam da construção de “Tangled Up in Blue”, digitalizadas e comentadas num vídeo, exibido enquanto a música toca no fone de ouvido do visitante.


“Por muitos anos, só existiam rumores dessas cadernetas, era parte da mitologia do Dylan”, contou Steve Higgins, diretor dos American Song Archives, que supervisiona o Bob Dylan Center. “O fato de essa mitologia virar realidade aqui é emocionante. Queremos ilustrar o processo criativo e mostrar que não é só uma explosão instantânea de genialidade. Requer trabalho e diligência.”


Higgins lembra quando viu os cadernos pela primeira vez, junto com a letra escrita a mão de “Jokerman”, uma de suas músicas favoritas. “Fiquei arrepiado, tive calafrios. Não podia acreditar”, contou.


Há coisas mais mundanas em exibição, como sua carteira de 1966 com um pedaço de papel com o telefone de Johnny Cash e o cartão de Otis Redding. Dylan havia conhecido Redding em Los Angeles e proposto que gravasse a sua então inédita “Just Like a Woman”.


Também está lá a jaqueta de couro que ele usou no Newport Folk Festival de 1965, quando foi vaiado ao trocar o violão pela guitarra, além de dezenas de correspondências de gente famosa, como Allen Ginsberg e George Harrison, e de fãs que ele nunca abriu, incluindo uma carta enviada do Brasil.


Mesmo não indo ao museu, Dylan agraciou o centro com uma escultura de ferro de quase cinco metros que ele criou no ano passado, sob medida para o hall de entrada.


Já sobre sua vida familiar, há pouquíssima informação. Mesmo ao falar de “The Man in Me”, “uma canção de amor lindamente escrita para sua mulher”, a exposição nem sequer lembra Sara Lownds, com quem ele teve quatro filhos até o divórcio, em 1977.


Segundo Higgins, a falta de detalhes pessoais simplesmente reflete o conteúdo dos arquivos. “Não temos artigos realmente pessoais ou familiares. O que compramos são mesmo os documentos de sua vida profissional”, disse, acrescentando que o centro manteve reuniões regulares por anos com a equipe administrativa de Dylan.


“Em muitos poucos casos fizeram objeções. Não consigo nem pensar num exemplo. Temos uma relação ótima.”


Fã de Bob Dylan desde criança, Higgins começou a trabalhar no museu como voluntário antes de ser contratado para o posto há cinco anos. Ele conta que viu Dylan poucas vezes ao vivo, “apenas 12 ou 13”, se comparado aos fãs mais radicais que já assistiram a centenas de shows.


“É um emprego dos sonhos. Ao mesmo tempo, estamos falando do maior artista americano vivo. Talvez o maior artista americano ponto. É uma grande responsabilidade.”


Ao amigo e historiador Douglas Brinkley, que dá nome à sala de leitura do arquivo do museu, Dylan explicou a escolha de Tulsa num artigo da revista Vanity Fair. “Há mais vibrações nas costas, com certeza”, disse Dylan. “Mas sou de Minnesota e gosto do zumbido casual da terra no coração do país.”
Dos mistérios da vida de Dylan, Tulsa parece um simples de decifrar.


O músico não tem conexões com a cidade, a segunda maior de Oklahoma com 400 mil habitantes. Já foi celebrada como a capital do petróleo do país e hoje vive num processo acelerado de hipsterização, com diversas microcervejarias, ciclovias e um dos parques públicos mais incríveis dos Estados Unidos, o Gathering Place.


Tulsa é também casa dos arquivos de Woody Guthrie, pioneiro da folk music que nasceu a cem quilômetros da cidade. Guthrie foi a obsessão de Dylan quando jovem. Sua equipe gostou do trabalho feito no Woody Guthrie Center, aberto em 2013 e agora a passos de distância do BDC, e ofereceu a venda dos arquivos de Dylan aos responsáveis, a George Kaiser Family Foundation, liderada pelo bilionário mais rico do estado.


George Kaiser, de 79 anos, é um mecenas de Tulsa. Empresário do setor financeiro, sua família fugiu da Alemanha nazista e enriqueceu com o petróleo da região. O executivo está por trás do parque público de US$ 465 milhões e inúmeros projetos filantrópicos voltados à educação infantil e justiça social.


“Queríamos que Woody Guthrie estivesse mais representado na consciência pública em Oklahoma porque ele foi um populista da esquerda que dificilmente existe hoje em dia”, disse Kaiser. “Chegamos a Bob Dylan não por causa de suas músicas de protesto, mas porque Jeff Rosen [agente de Dylan] veio a Tulsa algumas vezes e aprendeu muito sobre nossa missão voltada às crianças. E ele fez a sugestão a Bob.”


Dylan visitou o Woody Guthrie Center há cinco anos, quando estava na cidade para um show. Foi a única vez que a equipe da fundação teve a chance de conhecer o músico pessoalmente. Kaiser não se considera fã de música, mas ficou impressionado.


“Ele realmente me chocou porque é um introvertido, olhava para baixo e se desculpava o tempo todo”, disse. “Ele tem aquela personalidade diferente dos gênios.”