Como o Fantástico, que faz 50 anos, espelhou e moldou o Brasil da ditadura até Lula
O Fantástico ainda era um jovem de 20 anos quando Caetano Veloso e Gilberto Gil lembraram o programa para simbolizar a mídia no disco “Tropicália 2”. Ao completar 50 anos, o dominical se vê ainda mais estabelecido no imaginário popular, mas com o desafio de manter a relevância diante da descrença no jornalismo em meio ao crescimento das fake news e a queda generalizada de audiência da imprensa.
Se por um lado pouco mudou em relação ao racismo, à violência e à pobreza estruturais que os tropicalistas analisavam na canção “Haiti”, o Show da Vida é outro. Ao ampliar o tempo dedicado ao jornalismo e reduzir o do entretenimento, o programa parece se preocupar menos com o show e mais com a vida.
E vidas diferentes. Nos anos 1980, era a atriz Isadora Ribeiro que saía quase nua da água com uma espécie de raio metálico na testa para dar as boas-vindas ao dominical com seu corpo magro e bronzeado. Hoje, o balé é formado também por pessoas gordas e negras, além de uma nadadora paralímpica com uma perna amputada.
A diversidade, um dos maiores ativos lucrativos da indústria cultural contemporânea, também ganhou evidência no Fantástico com a contratação de Maju Coutinho, a segunda mulher negra à frente do programa em cinco décadas, depois de Glória Maria.
No cargo há um ano e meio, a apresentadora recusa a alcunha de “Wikipreta” -isto é, de se limitar a falar apenas sobre negritude-, mas está sempre a postos para reprovar casos de racismo e de outros preconceitos em nome da TV Globo.
Embora também tenha passado a se posicionar em outros telejornais, a emissora tem no Fantástico uma de suas principais vitrines para condenar atos como o ataque às sedes dos três Poderes e o racismo contra o jogador Vinicius Junior.
“Tem questões que são inegociáveis -racismo, homofobia, negacionismo, ameaça à democracia. Não me sinto à vontade para tecer um editorial nem posso fazer isso, mas a posição pode vir até no olhar ou na feição”, diz Coutinho.
A apresentadora reconhece que os posicionamentos da Globo são mais acentuados hoje. Sem citar o governo de Jair Bolsonaro, ela diz que a mudança aconteceu nos últimos anos. “A gente chegou a um momento de ameaça. Nunca vivemos um momento em que o limite foi tão tensionado e a gente correu tanto risco. Isso fez virarmos a chave.”
Coutinho afirma que, embora sinta um clima de mais leveza em relação ao ano passado, marcado pelo pleito polarizado, o momento não é de celebração. “O desafio [de cobrir o governo atual] é ficar vigilante, como sempre. Neste momento que sentimos um distensionamento da ameaça tão gritante, não podemos baixar a guarda. Temos que ficar atentos para que isso não ocorra novamente.”
Para além dos princípios editoriais, abertos ao público, a apresentadora diz que a direção da Globo não dá orientações a respeito do que pode ou não ser dito, o que Poliana Abritta reforça. “Não vejo a gente quebrar regras [do jornalismo]. Vejo a gente evoluir e não se calar para o que não podemos nos calar.”
“Não existe tema que seja tabu no Fantástico”, Abritta acrescenta. No cargo há nove anos, a apresentadora destaca a maneira como o programa tratou a diversidade de gênero e de orientações sexuais.
“São temas que a sociedade ainda não sabe que está preparada para discutir, mas o Fantástico apresenta -de forma didática, mas com o coração. Não existe transformação sem passar pelo coração. Não adianta empurrar uma mudança social goela abaixo.”
Houve casos bem-sucedidos, como a reportagem sobre o uso de barriga de aluguel pelo humorista Paulo Gustavo e Thales Bretas. E houve os que causaram gritaria. Foi o caso da pauta sobre a população carcerária de mulheres transgênero, em que Drauzio Varella dá um abraço numa detenta presa por matar uma criança.
Se pode representar avanços sociais, a aposta na diversidade pode também levar a emissora e quem a representa ser atacado. Numa busca no Google por Maju Coutinho, por exemplo, o primeiro resultado é relacionado à sua demissão -o que nunca aconteceu.
Coutinho, que há anos enfrenta ofensas racistas nas redes sociais, já levou aos tribunais de Justiça quem a ofendeu. “O que é negativo dá clique. Nem procuro mais meu nome [na internet]. Só aborrece”, afirma. “Não tivemos muitas conversas, mas lembro de a Glória Maria me dizer ʽerga a cabeça e siga firmeʼ. Ela abriu o caminho.”
Enquanto supera as dificuldades impostas pelo racismo, Coutinho, aos 44 anos, já pensa em outro ponto cego na televisão -a presença de mulheres idosas, que enfrentam mais dificuldade para manter seus empregos, salvo exceções como a da própria Glória Maria, pioneira também ao enfrentar o etarismo.
Sérgio Chapelin, o primeiro apresentador do Show da Vida, por exemplo, se afastou das câmeras só aos 78 anos, quando fazia o Globo Repórter. Abritta, aos 47, diz ter esperança de ver mulheres se aposentarem na mesma faixa etária.
“Já fui a novinha da Redação, mas estou envelhecendo. Só que o público espera que eu envelheça. Se ficar congelada, como fica a pessoa em casa que também está envelhecendo?”, questiona. “A gente está mais livre para envelhecer -e também para tentar diminuir as marcas do envelhecimento. Madonna é a prova disso.”
A trajetória dos apresentadores do Fantástico será revista numa série documental a ser lançada no próximo domingo. Os cinco episódios, divididos entre as principais reportagens de cada década, ilustram também as mudanças do programa -inclusive a maneira como o jornalismo ganhou protagonismo.
Em seus primeiros anos, o Fantástico exibia seis atrações musicais por semana, uma a cada bloco. Isso levava música, sozinha, a ocupar mais de um terço do programa. A maioria das inserções era de videoclipes, um formato que começou a ser produzido no país justamente pelo Fantástico.
O primeiro foi “América do Sul”, de Ney Matogrosso, sucedido por muitos outros de ícones da música brasileira, como Rita Lee, entre eles “Obrigado Não”, que teve um dos primeiros beijos gays da televisão, entre dois soldados e em horário nobre.
Havia ainda as estreias de trabalhos de astros internacionais, como “Black or White”, de Michael Jackson, que levou os espectadores ao delírio com os rostos mutantes no fim do vídeo.
A cobertura de música ainda ganhou fôlego com Zeca Camargo. Ele, que fez parte do primeiro time de apresentadores da MTV Brasil, onde se tornou diretor de jornalismo, relembra ter sido contratado para atrair um público mais jovem, com entrevistas de astros do pop.
Havia ainda os quadros de humor, entre eles o de Chico Anysio e suas piadas, Juarez Machado e seus números de mímica e o “Planeta Diário”, precursor do “Casseta & Planeta, Urgente!”.
Com exceção de casos esporádicos, como o “Isso a Globo Não Mostra”, os humorísticos minguaram após o fim dos anos 2000, marcados pelas participações de Regina Casé e Denise Fraga.
Os especiais sobre fantasmas e fenômenos sobrenaturais tiveram o mesmo destino. Foi o caso do Mister M, que foi ao ar em 1999 com um mágico que se apresentava com o rosto coberto por uma máscara e mostrava, com a locução cavernosa de Cid Moreira, como os truques de ilusionismo eram feitos.
A dramaturgia também desapareceu. Em 1996, o Fantástico montou uma megaoperação para adaptar para a televisão os contos de Nelson Rodrigues com “A Vida Como Ela É”, filmado em película, sob direção de Daniel Filho com Maitê Proença em papéis de destaque.
Um exemplo do sumiço dos quadros de ficção são alguns dos episódios comemorativos de 50 anos, mais informativos. Abritta, por exemplo, dará continuidade ao “Mulheres Fantásticas”, que destaca personagens do cotidiano com trajetórias parecidas com as de celebridades.
Coutinho, por sua vez, apresentará o “Música Preta Brasileira”, ao lado do rapper Rael, sobre axé, funk, samba e rap. Drauzio Varella, por fim, voltará ao ar com um quadro sobre alergias.
O Fantástico, vale lembrar, foi criado em 1973, nos anos de chumbo da ditadura militar, em pleno embate entre a repressão do governo de Emílio Garrastazu Médici e artistas como Raul Seixas e Paulo Coelho, presos e torturados.
O programa não passava despercebido pelos censores, que vetavam reportagens minutos antes de o programa ir ao ar, o que levava os editores a recorrerem à música, ao humor e até a apresentações de circo para tapar buracos deixados na programação.
Para José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, que criou o Fantástico, a missão do programa deveria ser levar esperança ao telespectador, o que representa um dos principais desafio para a direção, tanto na época da ditadura quanto hoje, com o país atolado há anos numa grave crise política e econômica.
Contratado para ler as cartas dos telespectadores em 1999, Bruno Bernardes, que passou a ocupar a chefia do programa há seis anos, diz que, sempre que possível, tenta encontrar e dar destaque ao lado positivo das notícias.
“Na pandemia, tentamos destacar toda e qualquer notícia relacionada às vacinas, porque elas representavam a cura e a esperança”, afirma. “Não dá para ser tiro, porrada e bomba. As pessoas querem se informar, ter um resumo da semana, mas querem ir para cama satisfeitas.”
O diretor afirma, no entanto, que a cobertura de grandes eventos, como as eleições e o ataque a Brasília, somado às reportagens investigativas -isto é, jornalismo- é o que mais traz audiência. É um fator que ajuda a explicar a guinada do programa.
Embora tenha 15 milhões de espectadores por exibição ante os 6 milhões de seu principal concorrente -o Domingo Espetacular, da Record- em São Paulo, onde estão os maiores investimentos publicitários, o Fantástico enfrenta desde o início da década de 2000 uma queda constante de público, ano após ano, com raros intervalos de alta.
Se hoje o SBT já não representa uma ameaça, sem a Casa dos Artistas ou programas inéditos de Silvio Santos, o Domingo Espetacular passou a rivalizar até nas intervenções visuais para chamadas de reportagens. É a prova de que a Globo vai precisar de fôlego para os próximos 50 anos do Fantástico.