Além de Simone, Brasil tem músicas que celebram um Natal triste e comunitário
Essas canções vêm de uma tradição anterior à própria indústria fonográfica, e foi nos anos 1930 que o país teve o primeiro grande sucesso natalino.
Em 2007, o Roupa Nova lançou o disco “Natal Todo Dia”, em que regrava sucessos natalinos estrangeiros com letras em português –em alguns casos, com a poesia na língua original, em inglês. O álbum, até hoje bastante ouvido nas semanas do fim do ano, marcou uma mudança em progresso na trilha sonora do brasileiro durante uma das celebrações mais importantes do ano no país.
“A gente ganhou lá em casa esse disco, mas era todo com versões em português de músicas americanas. E desde então aquilo chamou minha atenção. Como é que pode? Temos um cancioneiro de Natal que eu lembro da minha infância, muito rico”, diz Luiz Antônio Simas, professor, historiador, compositor e que desde o Natal em que ganhou o disco do Roupa Nova mapeia músicas brasileiras que cantam a festividade.
Especialmente neste século, as versões de sucessos natalinos estrangeiros ganharam protagonismo nas rádios, serviços de streaming e a TV –”Então É Natal”, versão de 1995, na voz de Simone, para “Happy Xmas (War Is Over)”, de John Lennon, é a mais emblemática. Mas desde antes de ter uma indústria fonográfica e até o funk contemporâneo, o Brasil possui um cancioneiro natalino original numeroso, com características próprias e muitas vezes esquecido.
“Você pega o ciclo da Natividade, por exemplo, o Dia de Reis, é um dia muito importante nas tradições ibéricas de Portugal, da Espanha. Acho que nós temos uma tradição de Natal que vem da península ibérica”, diz Simas. “O estranho é que sobretudo no século 20 se construiu um certo imaginário de Natal aqui que é o imaginário do frio, do inverno e da neve.”
Esse Natal dos trópicos, segundo o historiador, está mais baseado em manifestações folclóricas tradicionais do Nordeste, como os pastoris, o bumba meu boi e os reisados. “As folias de Reis reproduzem no fim das contas todo o processo de advento do Cristo e culminam com as visitas às casas ou às pessoas reproduzindo as visitações que os reis do Oriente fizeram ao Menino Jesus na manjedoura.”
“Pastoril e Lapinha”, disco lançado em 1977 pelo selo independente Discos Marcus Pereira, conhecido por gravar músicas tradicionais e regionais do Brasil, registra algumas das cantigas dessas celebrações. “É o Natal da alegria, do sol, da cachaça e do caju. O Natal comemorado com os nossos valores, a pobreza inclusive”, escreve o próprio Marcus Pereira no encarte do LP.
Essas canções vêm de uma tradição anterior à própria indústria fonográfica, e foi nos anos 1930 que o país teve o primeiro grande sucesso natalino. “Boas Festas”, composição de Assis Valente –renomado autor de sambas– gravada por Carlos Galhardo com arranjo de Pixinguinha, saiu em 1933 dando origem a toda uma tradição de músicas natalinas que cantam o Brasil.
“A indústria fonográfica percebeu que havia um cancioneiro de Natal ali que poderia fazer sucesso no disco. E aí todo mundo começa a fazer. O Ary Barroso fez música de Natal, o Braguinha compôs música de Natal, o Herivelto Martins fez isso e aí vai todo mundo. A música de Natal virou uma tradição interessantíssima no Brasil.”
Regravada por João Gilberto e Novos Baianos, entre muitos outros, “Boas Festas” teria sido escrita num Natal em que Valente estava triste e solitário e acaba refletindo esse sentimento em seus versos. “Já faz tempo que eu pedi, mas o meu Papai Noel não vem. Com certeza já morreu”, diz a letra.
A música abriu não só um filão natalino na indústria fonográfica, mas também deu bases para uma tradição bastante brasileira de cantar o Natal com uma certa dose de melancolia. Músicas como “Amargo Presente”, composição de Cartola cantada por Beth Carvalho, e “Meu Natal”, de Lupicínio Rodrigues cantada por Jamelão, tratam de pessoas que foram abandonadas no Natal.
Mas “Boas Festas” também deu espaço a músicas que retratam a desigualdade social do país. Em “Véspera de Natal”, que Adoniran Barbosa lançou em 1974, o sambista fala de uma noite de Natal em uma realidade pobre, lamentando a mesa vazia e a falta de presentes.
“O Natal, à medida que vira uma festa comercial, vai se tornando também uma festa que expressa essa desigualdade. Ele vai mostrando de uma forma muito explícita a brutal desigualdade do Brasil entre aqueles que têm e aqueles que não têm”, diz o historiador.
Essa transformação lembrada por Simas e refletida nas músicas também acompanha o declínio das próprias festas populares –e das músicas feitas para elas. “Acho que você tem uma certa decadência da própria festa como um momento de congraçamento coletivo. A gente vive uma sociedade cada vez mais individualizada. Então esses grandes ritos coletivos estão de certa maneira se enfraquecendo.”
A diminuição na produção de músicas brasileiras que cantam o Natal –que ainda contam com “Tão Bom que Foi o Natal”, de Chico Buarque, e “Cartão de Natal”, de Luiz Gonzaga, entre muitas e muitas outras– se dá paralelamente à ascensão das versões de músicas estrangeiras, mas ela não é totalmente abandonada. Em 2014, MCs da KL Produtora –que marcou época no funk paulista–, Bin Laden, Brinquedo, Pikachu e 2K, lançaram “Feliz Natal”, e em 2017, Mano Brown, dos Racionais MCs, publicou “Natal no Gueto”, para lembrar algumas.
E essa tradição, diz Simas, revela sobretudo um grande dilema brasileiro. “Por um lado, um país profundamente injusto, então tem muitas músicas de Natal que botam o dedo na ferida da injustiça, da desigualdade, do por que algumas crianças ganham presente e outras não. Por outro lado, elas mostram também que nós somos um país que construiu uma tradição sobretudo na cultura popular de congraçamento coletivo, que fez estratégias de reconstrução de vida comunitária, de congraçamento, de festa e de comida, de bebida, de alegria.”