Sertanejo busca novas ‘patroas’ para honrar legado de Marília Mendonça
O sucesso de Mendonça virou o mercado de compositores sertanejos de cabeça para baixo.
Há cerca de cinco anos, a carreira da compositora Waléria Leão se transformou completamente. Na esteira de “Infiel”, o primeiro grande sucesso da cantora Marília Mendonça, morta em acidente aos 26 anos, ela escreveu os versos de “50 Reais”. A letra fala de uma mulher que não aceita uma traição: “Não sei se dou na cara dela ou bato em você/ Mas eu não vim atrapalhar sua noite de prazer/ E pra ajudar pagar a dama que lhe satisfaz/ Toma aqui uns 50 reais”.
Gravada por Naiara Azevedo, a música marcou a ascensão de um estilo de compor música sertaneja a partir do eu-lírico feminino, o chamado feminejo. Leão já vinha tentando compor músicas com essa pegada havia alguns anos, só nunca conseguia tirá-las do papel –ou seja, vendê-las como música de trabalho a algum cantor ou cantora.
“Eu estava tentando antes, mas não tinha emplacado muita coisa”, ela diz. “Estava lutando para poder jogar minhas verdades. A Marília Mendonça veio muito forte, com uma abordagem que abriu muitas portas para mim.”
O ano da virada foi 2016, exatamente quando Mendonça deixava de ser exclusivamente compositora para assumir também os microfones e os palcos. “Foi quando eu consegui soltar uma letra, na época, a ’50 Reais’. Você percebe que a linguagem é bem parecida, é a defesa das mulheres. É não aceitar uma traição. Foi a partir daí que consegui dar identidade para as minhas músicas.”
O sucesso de Mendonça virou o mercado de compositores sertanejos de cabeça para baixo. De sua aparição em diante, começaram a surgir cada vez mais pedidos para músicas que seguissem o estilo da cantora de “Infiel”. Saíam os príncipes encantados, entravam os homens reais, em relacionamentos reais.
“Se você observar as músicas de antigamente, o homem não prestava e era bonito não prestar. A gente cantava e dançava aquilo lá um pouco refém daquela linguagem. A Marília favoreceu muito as mulheres.”
Leão, que viveu na pele esse impacto no mercado, não é nova no meio. Sua mãe, Fátima Leão, é uma das raras mulheres compositoras no sertanejo dos anos 1990, que foi sucesso em todo o Brasil. É dela, por exemplo, a letra de “Dormi na Praça”, clássico do primeiro disco de Bruno & Marrone, de 1994.
Mas, mesmo seguindo os passos da mãe, ela só encontrou a própria voz graças ao sucesso de Mendonça. Ela mudou até o jeito de compor músicas no eu-lírico masculino, que passou a querer agradar a mulher, ainda que na voz de um homem. “De repente, todo mundo só encomendava essas músicas mais feministas. É porque encorajou, a gente se sentiu amparada, se sentiu protegida, para lutar por isso em forma de música.”
A partir de 2017, Mendonça deixou a composição um pouco de lado. Segundo o jornalista especializado em sertanejo André Piunti, foi uma época em que ela estava em ascensão, com agenda lotada de shows, e menos tempo para escrever as músicas.
“Acontece com todos e aconteceu com ela também. Ela vivia para compor, passou a vida inteira compondo todos os dias. Depois que vira cantora, com compromissos, shows e viagens, não tinha mais aquele tempo para sentar, beber, fumar e ficar a noite inteira escrevendo. Era uma rotina que ela teve por anos e anos.”
Sendo a cantora número um do país, ela acabou, de alguma forma, obrigando que os escritórios de composição aprendessem a escrever em seu estilo. Não só para ela, mas para outras mulheres que despontaram a partir de seu sucesso.
“Então aquelas turmas de composições que vivem disso, e vivem muito bem, trabalham o tempo todo com isso, viraram tudo para Marília. Pensaram, ‘quero gravar com Marília’. Virou o novo Roberto Carlos, sabe? Todo mundo queria ter uma música gravada por ela. Então começaram a pegar todo tipo de palco possível para escrever música e emplacar com ela”, diz Piunti.
De certa forma, é o que aconteceu com Everton Mattos, um dos cabeças do grupo de compositores Single Hits. Ele está entre os autores de “Ciumeira”, um dos grandes sucessos da carreira de Mendonça, da letra “a verdade é que amante não quer ser amante”.
“Quando a gente fez ‘Ciumeira’, parece que usamos exatamente as palavras que ela queria falar”, diz o compositor, baseado em Goiânia, assim como Waléria Leão. “Não teve mudança. Apresentamos a música a ela, que curtiu e na hora decidiu gravar. Foi um sucesso.”
A quebra de paradigmas representada por Mendonça continua em prática. “Apesar de eu ser das antigas e já compor antes da Marília entrar no mercado, dizer que ela não influenciou todo mundo é mentira”, diz Everton Mattos. “A Marília abriu portas, deu voz a mulheres. Foi a grande responsável por essa ascensão. Hoje, temos muito mais compositoras. Muitas já aparecem fazendo sucesso.”
Cantoras e compositoras de outros gêneros, como a goiana Lauana Prado –outra compositora que assumiu os microfones–e, principalmente, a cearense Mari Fernandez, também já desdobram o estilo da rainha da sofrência em novas estéticas. Essa última é a autora do sucesso “Não, Não Vou”, do que chama de “piseiro sofrência” –ou seja, uma composição à maneira de Mendonça, só que numa base com estilo de forró eletrônico, a pisadinha.
Fernandez tem apenas 20 anos, mas escreve desde adolescente, a exemplo de sua principal referência. “É porque conversa muito com o sentimento. Sou uma pessoa muito sentimental. Quando comecei a escrever, eu não tinha nem vivido aquelas coisas, mas saía natural. E, quando ouvi Marília pela primeira vez, pensei ‘essa mulher é empoderada mesmo’. Como a gente diz no Ceará, é ‘rocheda'”, ela disse a este jornal sobre compor sofrências.
A carreira de Fernandez começou há menos de um ano, mas ela já se tornou a primeira mulher do forró a ter a música mais ouvida do país no Spotify –além de ser a única a alcançar essa posição numa música sem participações neste ano. Assim como Mendonça no sertanejo, ela quebra uma hegemonia de homens entre os nomes de sucesso na pisadinha.
Mas, apesar da importância incalculável para as mulheres –no meio e fora dele–, a revolução deixada por Mendonça na composição sertaneja não vai se manter sozinha. É nisso que acredita Waléria Leão. “Hoje o mercado é muito incerto. E talvez exista sim um retrocesso se as mulheres não tiverem a coragem que a Marília teve. Se começar a dar para trás, a gente vai perder essa força de linguagem.”
Para ela, a “mulherada que interpreta”, ou seja, as cantoras, têm que continuar levando adiante a linguagem de Mendonça. “Hoje, não tem ninguém no mercado com a força da Marília. Lauana Prado, Maiara e Maraísa, Naiara Azevedo… elas têm muita força para cantar músicas empoderadas, mas têm que ser firmes no propósito igual a Marília. Ela sempre bateu nessa tecla.”
“Se as mulheres que interpretam não continuarem a levar essa bandeira, de achar que a mulher traída tem que aceitar calada, não sei”, ela acrescenta. “A Marília tirou muita mulher de furada, através da música dela. Aí a gente entrou de corpo e alma, porque tem intérprete acreditando. Mas se pararem, não sei o que pode acontecer. Pra ser rainha, você precisa nascer rainha. Marília nasceu rainha.”