Poesia dura de sua música fez Milton Nascimento se tornar a voz de Minas Gerais
"A música do Milton é a história dele, muito ligada a essa paisagem do interior de Minas", diz Maria Dolores, trespontana e autora de "Travessia: A Vida de Milton Nascimento", biografia de 2006 que ganha nova edição este ano.
Uma flauta e um violão abrem “Três Pontas”, segunda faixa do disco de estreia homônimo de Milton Nascimento lançado em 1967. Um coro acompanhado pela bateria logo invade a gravação antes da voz do cantor aparecer, ainda meio abafada pelos instrumentos, convocando seus conterrâneos a verem o trem que chega à cidade e é recebido com festa.
Não é uma junção despretensiosa de sons que se desenrola a seguir, mas uma tradução musical dos apitos, da fumaça que sai da chaminé e das rodas do trem que acelera e desacelera pelos trilhos da cidadezinha onde Milton cresceu e descobriu que gostava de música -e que voltaria a aparecer, de forma literal ou mais implícita, em várias das criações que levaram Minas Gerais e o próprio cantor para mais longe que aqueles trilhos podiam.
“A música do Milton é a história dele, muito ligada a essa paisagem do interior de Minas”, diz Maria Dolores, trespontana e autora de “Travessia: A Vida de Milton Nascimento”, biografia de 2006 que ganha nova edição este ano. “Eu costumo dizer que ele seria o Milton Nascimento se tivesse nascido em qualquer lugar do mundo, porque essa genialidade é muito natural dele, mas o personagem Bituca e o tipo de música que ele fez só existe porque ele cresceu em Três Pontas”.
Do período na cidade a cerca de quatro horas da capital mineira, Belo Horizonte, onde anos mais tarde moraria, Milton guardou as músicas que ouvia no rádio sentado na calçada ao lado de Wagner Tiso, as referências dos filmes a que assistia no Cine Teatro Ideal, as novidades em vinil que uma amiga carioca trazia de trem nas férias e as vocalizações que era obrigado a fazer para suprir a ausência de notas de seu primeiro instrumento, uma sanfoninha que ganhou de seu pai.
A inspiração também vinha do cotidiano pacato e do horizonte de Três Pontas. “O Milton lembra que as primeiras vozes com as quais ele cantou foram as das montanhas. Ele descobriu aquele eco, aquela voz que respondia, e ficou encantado”, diz Maria Dolores.
Ela cita ainda o impacto que tiveram sobre o menino festas como a Folia de Reis e, ainda que nunca tenha sido religioso, tudo o que era sagrado. Referências sonoras ao badalar dos sinos, ao canto desafinado do coral que reverberava nas paredes grossas e no teto alto das igrejas e às ladainhas das procissões não são raras nas composições.
Embora seja a mais celebrada, a Minas cantada e escrita por Milton nunca foi esse lugar totalmente idílico, permeado apenas por boas memórias. “Ele não doura a pílula para falar de Minas. Ele fala de um estado que carrega beleza, glórias, uma história nobre. Mas também mostra uma Minas Gerais de dor, do legado da escravidão, das chagas do processo da mineração, do ciclo do ouro”, lembra Rafael Senra, professor da Universidade Federal do Amapá que mergulhou na obra do músico na dissertação “Dois Lados da Mesma Viagem: a Mineiridade e o Clube da Esquina”, publicada em 2010.
Para ele, muito do amadurecimento do recorte que o compositor fez do estado vem da amizade com o jornalista Fernando Brant, que compôs para a voz de Milton clássicos como “Travessia”, “Maria Maria” e “Encontros e Despedidas”.
Em “Ponta de Areia”, música que integra um dos discos mais importantes de Milton, “Minas”, de 1975, os dois escrevem sobre uma estrada de ferro que ligava Bahia às Gerais e havia sido desativada, deixando um rastro de tristeza e cidades descaracterizadas -história que anos antes Brant havia contado em forma de reportagem para a revista O Cruzeiro.
Da parceria dos dois também nasce o retrato do Beco do Mota, antigo ponto de prostituição da mineira Diamantina, que na música de 1969 é usado como metáfora para a repressão da ditadura militar.
Embora já tivesse cantado a inquieta “Para Lennon e McCartney”, composta por Brant, Lô Borges e Márcio Borges em 1970, é com “Clube da Esquina”, de 1972, que Milton chega ao auge de sua regionalidade -e também do quanto a extrapola e a transforma em sincretismo musical, se abrindo cada vez mais a estilos como o rock, o jazz, o blues e ritmos latino-americanos. Ao mesmo tempo, projeta Minas para o Brasil e para o mundo, levando nomes até então pouco ou nada conhecidos, como Lô, Beto Guedes e Toninho Horta, com ele.
“É um papel importante para a cena belo-horizontina, que num primeiro momento é um gueto de improbabilidades. Você não estava no Rio nem em São Paulo, você estava à margem. E o Clube da Esquina fez esse jogo virar um pouquinho”, afirma Samuel Rosa, líder da banda Skank, criada na capital mineira em 1991. “Há quem diga que para você fazer alguma coisa acontecer no Brasil fora do Rio e de São Paulo você tem que ser bom uma vez e meia, mas o Clube da Esquina se forjou fora do eixo e foi muito mais do que isso”.
É como se Milton e os outros integrantes mineiros daquela espécie de movimento -certamente o mais come quieto e casual da história da música brasileira- filtrassem suas experiências e referências do passado e as usassem como norte, mas também adicionassem novas inspirações musicais que abririam o caminho para os que viriam depois.
“Dizer que o Milton faz música mineira é pouco para ele. Ele fez uma síntese daquilo que absorveu dos Beatles, de cantores na década de 1950 e 1960, dos grandes nomes do jazz, da música sacra, africana. A música dele não se parece com nada. É de Minas, mas, paradoxalmente, é do mundo”, diz o vocalista do Skank.
O legado de Milton também escorre para a música do rapper mineiro Djonga, que tem a voz do cantor como trilha da infância e recriou a famosa capa do “Clube da Esquina” em seu disco de estreia “Heresia”, de 2017. Ele também interpreta “Travessia” no álbum “Atemporais”, que faz uma homenagem a Milton e é previsto para este ano.
“Depois de Milton aconteceu muita coisa em Minas, de Sepultura a Djonga. É uma música política, forte, com participação de muita gente, mas ao mesmo tempo acho que os encontros continuam sendo casuais. É uma aura Clube da Esquina que ronda”, diz o rapper.
“Todo mundo consegue fazer essa música meio triste e meio feliz ao mesmo tempo. Tem uma dor na nossa poesia que é diferente e eu acho que isso parte do Milton. Nós somos mineiros demais. É até difícil explicar, tá ligado? É difícil explicar por que a gente é a gente.”