Novela ‘Um Lugar ao Sol’ leva Cauã Reymond a refletir sobre a mãe, que foi adotada


Por Folhapress Publicado 08/11/2021
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Reprodução: Instagram

Fazer o papel de dois irmãos gêmeos não é novidade para Cauã Reymond, de 41 anos, que passou por esse teste com louvor na minissérie “Dois Irmãos”, da obra de Milton Hatoum, há cinco anos. Mas a tarefa que o aguarda em “Um Lugar ao Sol”, primeira novela de Lícia Manzo para a faixa das nove da Globo, é outra versão desse exercício.


Além de dar vida a Christian e Renato, gêmeos separados na infância e criados sob realidades completamente distintas, Reymond fingirá ser um terceiro elemento, quando Christian assumir a identidade de Renato, dado como morto. Apesar disso, autora, diretor e ator sustentam que não se trata de um oportunista sem caráter.


“Ele faz três caras, o irmão desvalido, o rico e o irmão desvalido que tem de se passar pelo irmão rico”, diz Manzo. “E o que eu acho muito preciso no trabalho dele é que ele sustenta tudo no olhar. A gente vê aquele menino desvalido que tem um terno, uma gravata, mas tem um olhar aprisionado dentro de um corpo que não é o seu, um pouco aliviado de estar ali, mas também querendo se livrar dessa farsa.”


O melodrama da vez aponta que a mãe de Christian e Christofer –a ser rebatizado como Renato pela mãe adotiva–, morreu. O pai dessa família, no interior de Goiás, não tem condições de criar os filhos e aceita entregar as crianças para a adoção quando uma vizinha comenta sobre um casal abastado do Rio de Janeiro que está à procura de uma criança para chamar de sua.


Elenice, papel de Lorena Comparato e, depois, Ana Beatriz Nogueira, no entanto, acaba ficando só com um dos garotos, ao ver que o outro está muito doente. Começa aí a segregação de Christian.


Ao ser confrontada com o fato de que várias novelas já exploraram a presença de gêmeos em seus enredos, Manzo argumenta que não é bem isso que interessa a ela. “Eu não acredito em plot repetido, eu acredito em modo de contar. Acho que a autoria vem antes da história. Para mim, não importa a troca [dos gêmeos], não é a trama. Senão seria só ‘A Usurpadora’ mesmo”, diz ela, em referência ao dramalhão mexicano.


“O que me interessa é a repercussão dos fatos dentro dos personagens, o jogo subjetivo. Estou muito mais interessada na camada psicológica e social que esse jogo me traz.”


A autora conta que assistiu a um documentário na GloboNews, “Meus 18 Anos”, que apresenta personagens forçados a deixar o abrigo onde foram abandonados quando pequenos, sem jamais terem sido adotados. No grupo de quem havia acabado de completar a maioridade, muitos saíam com o sonho de ser médico, pedagogo ou psicólogo.


“Uma pergunta”, sugere a autora, é “será que isso que eles desejam é possível?”. “Comecei a perseguir o personagem que sai do abrigo, parecia bom. Mas eu não tinha o elemento do folhetim, como ‘ele quer ter outra vida’, e pensei que fosse emblemático –como dizem que todos nós temos um duplo, alguém que está vivendo em outro lugar– se ele ficasse obcecado por isso. Então, [a história] é muito mais sobre alguém que fica obstinado pela vida que foi roubada dele. Há um outro dele em outro lugar, que teve tudo o que ele não teve.”


“No Brasil, oportunidades são roubadas diariamente da maior parte da população, e é legítimo que muita gente olhe para o lado com um olhar de cobiça”, defende a autora.


Tanto Manzo como Maurício Farias enfatizam que Christian não conspira contra o irmão. “Ele não quer isso, ele é um criminoso semiacidental”, acrescenta a autora, que de novo sublinha não estar em busca de uma “novidade”, mas de “uma história que seja verdadeira” para ela.


Se o leitor viu isso até aqui como um dramalhão de tintas fortes, prepare-se para um enredo de vida real dentro do próprio set da novela: foi em função da nova produção que Cauã Reymond descobriu que Denise, a mãe que perdeu há dois anos e meio, foi adotada.


“Foi muito contundente para mim, de certa forma, estar dentro de uma realidade de mais uma história de irmãos da Lícia Manzo. Me trazer para esse universo, em muitos momentos, foi muito duro, porque me colocou para pensar na realidade da minha mãe”, contou o ator.


“A irmã da minha mãe morreu por desnutrição, e a família a entregou para alguém. Eu descobri isso por meio do meu irmão, conversando sobre a novela. Minha mãe foi entregue de mão em mão até chegar até a minha avó.”


Pável Reymond, de 33 anos, o irmão de Cauã, contracenará com ele nas imagens que simulam o encontro dos gêmeos. Eles estarão juntos por só um capítulo. Renato sairá de cena até o terceiro episódio, quando será dado como morto, e Christian instintivamente se põe no lugar do outro, sem conseguir mais sair disso. “A vida e uma série de acasos vão levando ele a isso. Ele não tem como voltar atrás”, adianta Manzo.


A sugestão pelo dublê partiu de Alinne Moraes, ex-mulher de Reymond e agora seu par romântico na trama, Bárbara. A personagem encabeça dois dos vários temas abordados na história -codependência emocional (como uma mulher que ama demais e só age em função do que o marido vai pensar) e apartheid intelectual (quando tomará como seu um roteiro escrito por outra pessoa).


“Um Lugar ao Sol”, aliás, está abarrotada de pontos de reflexão. A questão da desigualdade social está no centro da história toda. Há ainda a invisibilidade feminina e a menopausa, assunto que atinge toda uma população feminina represada para discutir o tema de modo aberto. O enfoque virá pela personagem de Andréa Beltrão, casada com Maurício Farias há décadas.


Aliás, as dificuldades de se manter a felicidade num casamento longo também estarão no enredo, assim como a gordofobia e a inclusão social de uma jovem com Down, síndrome pouco abordada na ficção, ainda mais na fase adulta.


“Sou mãe de uma menina especial, minha filha tem uma síndrome. Ela fará 23 anos em dezembro, eu ando vivendo muito o adulto especial, distinto da criança, como ele se inclui na sociedade, como a sexualidade se apresenta, ou mesmo a autonomia? Hoje, há vários movimentos muito interessantes para conferir independência e autonomia a uma pessoa especial, como o Juntos, Podemos Morar Sozinhos, projeto que capacita pessoas especiais”, conta.


A personagem, vivida pela influenciadora digital Samanta Quadrado, de 32 anos, será filha de Otávio Müller e Cláudia Mauro na ficção.


Apesar de tantas bandeiras sociais em cena, o enredo será enxuto para uma novela. “Um Lugar ao Sol” terá só 107 capítulos, 49 a menos do que a previsão inicial e que a média atual de uma novela das nove. A Globo justificou o corte com alegações sobre decisões da nova grade de programação, lembrando que a trama entrou em produção em 2019 e teve gravações interrompidas em duas ocasiões, por causa da pandemia, ocupando, portanto, o orçamento de três anos.


Manzo, no entanto, comemora a redução do risco de “barriga”, jargão que batiza aquele período em que o enredo pouco avança. Uma novela das nove reserva a cada capítulo quase uma hora de conteúdo –descontando intervalos–, o que é quase o dobro de um episódio de novela das seis, faixa para a qual ela escreveu suas duas únicas novelas até então exibidas, “A Vida da Gente” e “Sete Vidas”. “São, portanto, 107 horas de cenas. É bastante coisa”, diz ela.


A pandemia também exigiu do elenco, e em especial do protagonista, uma concentração fora do comum para gravar cenas de um grande arco de capítulos, que englobava de 30 a 50 episódios, de modo não cronológico. O vaivém de cenas realizadas mereceu de Cauã Reymond uma menção especial aos continuístas do folhetim, que se esmeraram em documentar cada expediente para que as devidas emendas fossem feitas na edição final, sem erros.


“É um trabalho que exigiu dele, além de talento, muita competência e concentração”, diz Manzo, sobre Reymond. Farias também cobre o ator de elogios, “galã”, sim, sem demérito algum, “homem bonito” e muito cioso de todo o processo de atuação.


O elenco conta ainda com Andréia Horta, mineira de Juiz de Fora que está feliz em poder fazer seu próprio sotaque em cena, além de Marieta Severo, Marco Ricca, Mariana Lima, Denise Fraga, Regina Braga, Gabriel Leone, José de Abreu, Fernando Eiras e Ana Baird, entre outros.


Daniel Dantas, segundo Farias, pode ser tratado como o grande vilão da história, embora tanto ele como Manzo destaquem a opção por uma dramaturgia moderna, sem mocinhos sacralizados ou malvados desumanos. Ambos estão empenhados em trabalhar para expor a dualidade do ser humano, o que dá mais trabalho para alcançar a massa do que o maniqueísmo.


Segundo Manzo, o trabalho da criação de personagens passa, obrigatoriamente, pela arte de apresentar as razões que todo mundo tem para traçar os seus caminhos. A obsessão em jogar muitas linhas escritas no lixo faz parte desse exercício. “Lixeira vazia é sinal de história ruim, eu digo que é preciso jogar muita coisa fora até encontrar o ponto.”


Diretor responsável pelo mais longevo seriado da TV brasileira –a versão de 2000 de “A Grande Família”, que durou 14 anos e dos quais ele dirigiu dez–, além de “Tapas e Beijos” e do “Tá no Ar”, criado em parceria com Marcius Melhem e Marcelo Adnet, Farias está estreando na direção-artística de novelas com “Um Lugar ao Sol”.


E ela, que também tem sua parcela de responsabilidade em seriados de humor, tendo começado na Globo pelo roteiro do “Sai de Baixo”, afirma se orgulhar em dizer que riu diante da TV ao conferir os 30 primeiros capítulos da história. Não que haja ali o famigerado núcleo cômico, longe disso. Autora e diretor assumem uma opção pelo humor gerado a partir de situações.


“Não tem um personagem do tipo ‘esse é o engraçado’. Lembrei uma máxima do Billy Wilder em que ele diz ‘o bom humor não vem de um personagem, vem da relação entre os personagens’. É no atrito, é na faísca, o jeito de um e as idiossincrasias do outro, é essa mistura que muitas vezes provoca coisas francamente engraçadas. Mas eu fiquei satisfeita, porque estou com um rótulo de dramática”, ela diz, lembrando “A Vida da Gente”, novela das seis em que retratou uma personagem em coma.


Também por culpa da pandemia, a novela vai estrear 100% gravada, sendo portanto uma obra fechada, o que inibe eventuais ajustes operados a partir da receptividade do público. Um meio de se precaver contra isso foi o compartilhamento de cenas prontas entre autora e diretor, como uma checagem final de que não havia arestas a aparar. Ainda mais quando se tem um texto escrito há três anos, nesses tempos em que conceitos e pré-conceitos são revistos todos os dias.


“Um Lugar ao Sol” estreia nesta segunda-feira, na vaga da reprise de “Império”, prometendo um fim à temporada de repetecos da Globo em seu principal horário. Manzo escreve com Leonardo Moreira e Rodrigo Castilho e colaboração de Carla Madeira, Cecília Giannetti, Dora Castellar e Marta Goés. A direção geral é de André Câmara e direção de Vicente Barcellos, Clara Kutner, João Gomez, Pedro Freire e Maria Clara Abreu. A produção é de Andrea Kelly e a direção de gênero, de José Luiz Villamarim.