Entenda por que ‘Pantanal’ virou fenômeno jovem com revolução sexual e memes
A insurreição vegetariana do garoto Joventino. Uma Muda gravando áudio no WhatsApp. O Véio do Rio virando “Old from the River”. E toda uma legião de “Maria Bruaquers”.
São sintomas de uma novela que viralizou, e qualquer pessoa ativa nas redes sociais percebe na forma de memes e figurinhas os tremores da repercussão de “Pantanal” entre o público jovem. Uma impressão que, por sinal, se confirma em números.
Além de segurar uma audiência contínua no patamar acima de 30 pontos -um feito para os parâmetros atuais das telenovelas-, “Pantanal” conquistou um novo público de 15 a 29 anos que se reúne para ver a sofrência de Zé Leôncio na televisão. Esse contingente da geração Z é 25% maior que o de sua antecessora, “Um Lugar ao Sol”.
É certo que a obra de Lícia Manzo tinha preocupações voltadas a uma faixa etária mais alta -a crise de meia-idade superada pela Rebeca de Andréa Beltrão roubou a cena-, mas “Pantanal”, resgatada quase na íntegra de um novelão de 32 anos atrás do hoje nonagenário Benedito Ruy Barbosa, não era opção óbvia para atrair adolescentes. O que está acontecendo?
“É uma novela de conflitos muito contemporâneos, movidos por personagens jovens e adaptados por um autor jovem”, resume Amauri Soares, diretor da TV Globo e suas afiliadas, em entrevista a este repórter. Bruno Luperi, neto de Benedito Ruy Barbosa que escreve a versão atual, tem 34 anos.
O executivo identificou na trama uma oportunidade de incrementar a audiência desse público e desenhou uma estratégia em torno do último mês do Big Brother Brasil, “o conteúdo de televisão que mais atinge os jovens no país”. O primeiro trailer da novela foi apresentado num intervalo do reality, e seu primeiro capítulo foi exibido para os confinados no quadro “Cinema do Líder”.
“O mérito é do conteúdo, claro”, afirma Soares. “Poderia ter a estratégia de lançamento que eu quisesse -se o conteúdo não tivesse adequação e poder de engajamento, não aconteceria.”
Segundo o jornalista Nilson Xavier, autor do “Almanaque da Telenovela Brasileira”, a última obra que gerou bom engajamento na internet foi “A Força do Querer”, cinco anos atrás. “E só em momentos de catarse.”
“Pantanal” fidelizou a audiência num crescendo, segundo ele, de maneira que não se via desde “Avenida Brasil”. “Naturalmente esse público jovem é bem-vindo, porque a Globo esgotou ‘Malhação’.
De agora em diante vamos ter esses atores mais jovens, que estavam muito confinados naquele horário, de volta às novelas.”
E sem dúvida o elenco é um chamariz eficiente, para dizer o mínimo. A tríade composta por Alanis Guillen, Jesuíta Barbosa e Julia Dalavia -Juma, Jove e Guta, nesta ordem- atrai tanto pela qualidade de atuação quanto por aspectos, digamos, estéticos.
“A Juma tem uma consciência de si, do seu corpo e das suas vontades, que gera um interesse enorme”, diz sua intérprete, de 24 anos. “Resgatar o contato íntimo consigo mesmo é algo revolucionário.”
Personagens como a Guta, acrescenta Guillen, trazem um “frescor de mudança” ao quebrarem padrões sexuais e comportamentais mais conservadores, algo esperado de um folhetim ambientado na região rural.
“A Guta teve o privilégio de poder acessar conhecimentos e experimentar sua liberdade sexual, bem confortável consigo mesma”, comenta Dalavia, a atriz que dá vida à personagem. “A mãe dela, Maria Bruaca, sempre teve o mesmo tesão de viver, mas estava tudo encoberto porque ela não teve essa possibilidade.”
Se “Pantanal” não chega a ser vanguardista em papéis de gênero -afinal, tem limites a ousadia de um folhetim voltado a um público tão amplo- e é mais comportada que a versão anterior em termos de nudez, é inegável que tateia no sentido da subversão.
Basta notar como os corpos dos peões são mais sexualizados na tela que os das mulheres, o que Jesuíta Barbosa diz esperar que sirva para discutir como “o feminino também está dentro do corpo masculino”.
“É interessante porque você tem uma menina que tem a coragem e a força que estaria num homem, isso como convenção social, e um homem que é todo sistemático e delicado”, diz ele, sobre Guta e seu próprio personagem. “No fundo essa convenção não existe, a gente cria essa barreira do que deve ser homem e mulher, mas sempre se questiona.”
Poucos debates sugam tanto a atenção de jovens quanto a descoberta da sexualidade, em especial para uma geração acostumada a pensar gêneros e relacionamentos em formatos mais livres -ainda que, segundo pesquisas, tenham uma vida sexual menos agitada que gerações anteriores.
As duas atrizes dizem ao repórter que suas amigas, que não tinham hábito de ver novela, têm ficado em casa e ligado a TV na hora de “Pantanal”. O próprio autor, Bruno Luperi, se diz impressionado com essa repercussão e afirma que não escreve os capítulos com o objetivo específico de mirar essa faixa -algo que ressoa na fala de Soares, o diretor da Globo.
O negócio da emissora não é segmentar, aponta o executivo, mas falar ao público mais amplo possível. “Hoje, de cada três casas brasileiras, uma já tem três ou mais gerações vivendo juntas. É uma estratégia de sobrevivência. Queremos apresentar histórias com potencial de engajamento geracional, que mobilizem toda a casa. E ‘Pantanal’ é muito equipada para isso.”
A trama, afinal, cativa também as saudades de quem viu Cristiana Oliveira se revelar onça há mais de três décadas e apresenta conflitos protagonizados por atores já firmes na memória afetiva do público, como Murilo Benício e Marcos Palmeira.
A disputa da TV aberta pela atenção dos jovens ficou mais acirrada conforme as alternativas de streaming e de redes sociais proliferaram -pense que hoje a internet está dentro do bolso da maioria dos brasileiros, o que não era verdade meros 15 anos atrás.
De acordo com dados da consultoria Kantar, hoje o grupo de 18 a 24 anos representa cerca de 5% dos consumidores de televisão, e o de 25 a 34 anos é 10% do público. Para efeito de comparação, a faixa de 20 a 34 anos agrupa cerca de 25% da população brasileira total, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Durante muitos anos, “Malhação” cumpria o papel de apresentar os interesses e angústias da juventude a toda a família, afirma Amauri Soares, mas “o próximo passo é levar essa preocupação para toda a dramaturgia”.
O executivo afirma não ter observado uma diminuição do consumo do conteúdo da Globo pelos jovens, já que ele também se espraiou para celulares e para um novo serviço de streaming, o Globoplay. Além disso, o adolescente que quer ver a partida de futebol do time pelo qual é fanático ainda sintoniza no mesmo horário aos domingos.
Um monitoramento da Kantar oferecido à Globo, acrescenta ele, mostra que 94% da conversa sobre audiovisual que acontece nas redes sociais é sobre a programação do canal.
De qualquer forma, é inegável que a fissura da juventude por “Pantanal” -atraída pela magia do misticismo, pelas paisagens paradisíacas ou pela beleza do corpo dos atores- é um salto além. Para saber onde esse público vai aterrissar depois, só mesmo sendo o Véio do Rio.