De ‘Pantanal’ às clássicas, novelas são última moda mesmo na era do streaming
Faz pelo menos 20 anos que se fala sobre uma suposta tendência de desgaste do gênero telenovela no gosto do público brasileiro, sem que isso se consume. Se um folhetim de horário nobre na Globo é visto hoje por 30% da audiência, ante 60% de 30 anos atrás, a fragmentação dessa plateia também aponta para uma busca de dramaturgia seriada em outras telas, de modo que a oferta de títulos apegados ao melodrama nunca foi tão farta como agora.
Na TV paga, o Viva, que nasceu com três faixas diárias de novelas e no ano passado ganhou um quarto horário só para as produções latinas, está há três anos na liderança de todos os canais por assinatura. A mexicana “Marimar”, que inaugurou a vaga latina, alcançou média mensal de 2,1 milhões de pessoas por episódio, somando o público da TV linear e da transmissão sob demanda do canal.
O SBT, com cinco faixas de novelas, e a Record, hoje com três, têm só uma produção inédita cada um, ocupando as demais com reprises próprias ou importadas da vizinhança latina, um bom custo-benefício para ambos os canais, enquanto a Globo tem hoje seis faixas de novelas, três não inéditas –duas reprises vespertinas e um horário alternativo na madrugada para “Cara e Coragem”, originalmente exibida às sete meia da noite.
No streaming, o Globoplay também abriu espaço para uma enxurrada de produções mexicanas, turcas e portuguesas, além de relançar com louvor quase todo o acervo da Globo em condições de ser revisitado, somando mais de 180 folhetins para todos os gostos e se firmando como o streaming das novelas.
A Netflix ensaia desde o ano passado a produção do gênero no país, mas em tamanho mais próximo das séries, como o drama mexicano “Quem Matou Sara?”, original do serviço de streaming. E na HBO Max, que contratou o autor e ex-diretor de teledramaturgia da Globo, Silvio de Abreu, foi adotado o nome de “telessérie” para designar o mesmo melodrama em formatos mais curtos que a novela da TV aberta.
A própria Globo vem chamando de novela o que já foi tratado como supersérie, como “Verdades Secretas 2”, maior audiência do Globoplay no ano passado, e “Todas as Flores”, que seria escrita por João Emanuel Carneiro com 140 capítulos para a TV aberta e foi reduzida a 85 episódios para ir ao ar antes pelo streaming.
A mesma plataforma já definiu “Guerreiros do Sol”, uma releitura do cangaço de Lampião e Maria Bonita pelo viés feminino, de George Moura e Sérgio Goldenberg, com previsão de se concluir com 45 episódios. Tanto o enredo de Carneiro como a nova saga do sertão serão vistos só no ano seguinte pela TV aberta, como um resgate da novela das 23h.
“Quais são as características dos conteúdos desejados por todos os exibidores hoje, seja sob demanda ou linear? Conteúdos de alto engajamento, de alto impacto, conteúdos seriados de capítulos grandes, que estabeleçam uma conexão mais duradoura, conteúdos que possam ser plataforma de repercussão ou de abordagens da sociedade contemporânea. Eu conheço um formato que entrega tudo isso e se chama telenovela”, define Amauri Soares, diretor da TV Globo e afiliadas.
“Eu diria que novela está na moda, só que na Globo nunca deixou de estar na moda”, completa José Luiz Villamarim, diretor de teledramaturgia da Globo. “A gente sempre fez, faz e fará novelas, procurando nos manter à frente, do ponto de vista do audiovisual, com essa dramaturgia que a gente domina, tem expertise, é a nossa grande obra.”
“Agora estaremos fazendo três novelas das nove ao mesmo tempo”, continua Villamarim. “‘Pantanal’ ainda está sendo realizada, e vamos começar a gravar ‘Travessia’, da Glória Perez, e ‘Todas as Flores’, de João Emanuel. Isso é um sinal de quanto o audiovisual hoje está efervescente.”
É verdade que a estrutura construída pelos Estúdios Globo permite uma logística que Record e SBT, por exemplo, raras vezes conseguiram, de alcançar um planejamento que assegure a permanência do gênero no ar continuamente, com produções inéditas, sem pausas na grade.
Vem também da telenovela, e de alguns dos títulos mais icônicos do segmento, a primeira parceria entre Globo e YouTube –a série “Novelei” estreia nesta segunda, com nove episódios que mesclam youtubers e atores da emissora, como Tony Ramos, Paulo Vieira, Susana Vieira, Carolina Dieckmann e Isis Valverde.
Criada por Bia Braune, colunista deste jornal, com colaboração de Nigel Goodman e Marcelo Martinez, sob direção de Felipe Joffily, a história se passa em um mundo paralelo em que, após um bug no sistema, as novelas começam a ser apagadas da memória de todos.
Para reverter essa situação, Vitinho, vivido por Paulo Vieira, assistente de produção de muitos anos na Globo, convoca um time de criadores da internet –Thalita Meneghim, Gusta Stockler, Phellyx, Babu Carreira, Evandro Rodrigues e Livia La Gatto– para refazerem algumas das obras que marcaram época, com a ajuda da inteligência artificial Susaninha –papel de Susana Vieira.
Na nova versão de “Avenida Brasil”, Nina finalmente compra um pen drive para salvar as fotos comprometedoras de Carminha, enquanto, na releitura de “Laços de Família”, Camila se recusa a raspar a cabeça.
Soares lembra que o “Novelei” é uma iniciativa da VIU, unidade digital do Grupo Globo, e foi integralmente apoiado pela emissora “porque leva o nosso gênero mais importante para o público jovem, o mais atuante em redes sociais”.
“Os Estúdios [Globo] fizeram toda a supervisão. A gente montou uma equipe, uma sala de roteiro. A proposta era para o YouTube e para nós foi uma novidade fazer isso com a leveza e a linguagem própria dos influenciadores”, acrescenta Villamarim.
“Novelei” reforça o propósito da emissora de conversar com a plateia mais jovem, especialmente após o fim de “Malhação”, como afirma Soares. A premissa de levar temáticas desse segmento às demais produções tem sido bem executada em “Pantanal”, um enredo criado há 32 anos e reescrito por um autor jovem, no caso, Bruno Luperi, de 34 anos, com temas que dialogam com essa faixa etária.
Nas contas da Kantar Ibope Media, o enredo acumulou 1,6 milhão de jovens diferentes por semana ao longo das 12 primeiras semanas no ar. Para tanto, pesaram, segundo Amauri Soares, as estratégias de lançamento da novela durante o BBB, preferencialmente visto pelos mais novos.
Obras como “Novelei” e “Pantanal”, a liderança do Viva, os clássicos no Globoplay e até o bom posicionamento de novelas infantis antigas do SBT no catálogo da Netflix carregam a percepção de uma tendência nostálgica na dramaturgia.
Mas Villamarim não vê o momento como um boom para remakes, ou não maior do que já era. “A gente sempre teve remakes, que nada mais são que boas histórias adaptadas para o presente. Sou fã, já dirigi três, ‘Anjo Mau’, ‘Cabocla’ e ‘O Rebu’.”
“Veja ‘Pantanal’, uma novela super contemporânea, a ponto de determinados personagens agora terem um alcance que a primeira versão não teve, caso da Maria Bruaca, que se conecta com questões que estão postas hoje e não estavam da primeira vez. Tem um componente a mais que alimenta o interesse.”
Villamarim adianta que a Globo já trabalha com planos para outras releituras em curto prazo, mas faz segredo sobre os títulos em estudo, resumindo apenas que são todos da casa –ao contrário de “Pantanal” e “Éramos Seis”, duas adaptações recentes que ainda não tinham sido contadas pela tela da Globo.
“A maioria do público está conhecendo ‘Pantanal’ agora”, diz Soares. “Uma pequena parte teve contato com a outra [da Manchete], mas isso ajuda muito na conexão, na formação de fãs, porque essas pessoas que conhecem a novela alimentam a conversa com essa memória afetiva e isso ajuda muito a divulgar a história”, acredita o diretor da Globo.
“A reprise da novela também tem esse componente. Tem gente no Viva que está vendo uma novela de novo, tem gente que está vendo de novo junto com alguém da família que está vendo pela primeira vez, a gente vê muito isso em pesquisas.”
Esses elementos dão ao remake um peso extra, ainda mais em tempos de redes sociais que geram engajamento –e ajudam a audiência. No Globoplay, dos dez conteúdos sob demanda mais vistos em junho, seis são novelas, com liderança de “Pantanal” e o terceiro lugar para “América”.
Na trilha dos remakes, uma releitura já em desenvolvimento pela produtora Floresta, com provável destino a HBO Max, é “Dona Beja”, novela protagonizada por Maitê Proença em 1986 na mesma Manchete que apostou em “Pantanal”.
Na Netflix, o ensaio para produzir melodrama no país tem sido experimentado com títulos que ainda parecem séries, como “Maldivas”, sem descartar o retorno obtido com produções originais da empresa na América Latina, como “Desejo Sombrio”, “Coração Marcado” e “Quem Matou Sara?”.
Há ainda os sul-coreanos “Pousando no Amor”, “Vincenzo” e “Juvenile Justice”, que foi um dos títulos de língua não inglesa mais vistos em março, com 25,4 milhões de horas vistas. E o original turco “Midnight at the Pera Palace”, que encabeçou a lista, com 11,8 milhões de horas.
Isso sem falar em títulos licenciados no Brasil, caso de “Chiquititas”, “Carinha de Anjo” e “Carrossel”, com formato longo de novela, além do hit “Café com Aroma de Mulher”, todas presentes no top dez da plataforma.
“A gente tem que oferecer uma grande variedade de gêneros porque temos uma grande base de assinantes”, diz Elisabetta Zenatti, vice-presidente de conteúdo da Netflix no Brasil. “E a gente já está bem servido com séries de comédia, séries dramáticas. A novela é mais um pilar da programação, e os latinos gostam de ver um drama”, justifica.
Segundo a executiva, as “novelas” da Netflix não serão apresentadas como tal. “A gente não vai chamar de novelas, a gente vai chamar de série. As nossas vão ser séries talvez um pouco mais longas com elementos de folhetim. Estamos desenvolvendo várias séries mais longas”, diz Zenatti, sobre produções que nem chegam a 20 capítulos e não necessariamente terão várias temporadas.
A presença das novelas infantis do SBT no top dez também pode ser entendida pela grande extensão dessas produções, já que o ranking diz respeito ao número de horas vistas.
Na Globo, a presença do streaming aumenta a possibilidade de novas produções, já que a conta é financiada por duas janelas de exibição diferentes, como ocorrerá com “Todas as Flores”, paga pelo orçamento do Globoplay e da TV Globo, com estreia prevista para outubro no streaming.
“Numa dessas ironias e ciclos da história, a gente tem esse formato, que tem 70 anos na TV e tem uma história enorme passada no rádio”, lembra Amauri Soares. “Curiosamente, esse formato, que você pode chamar de dramaturgia longa ou de telenovela, é supercontemporâneo e entrega todos os atributos de conteúdo que os exibidores querem.”