Série da Boate Kiss, na Netflix, desperta vários gatilhos em quem tem filho baladeiro
Tenebrosa por si só, a história do incêndio da Boate Kiss, em Santa Maria, é uma verdadeira paulada na moleira, e a versão da diretora Julia Rezende atinge de forma ainda mais contundente um público específico: as mães e os pais de adolescentes e jovens adultos que, como os da série, costumam sair à noite.
Não é fácil para ninguém manter a serenidade ao longo dos cinco episódios de “Todo Dia a Mesma Noite”, que estreou dias atrás, na Netflix. Tenebrosa por si só, a história do incêndio da Boate Kiss, em Santa Maria, é uma verdadeira paulada na moleira, e a versão da diretora Julia Rezende atinge de forma ainda mais contundente um público específico: as mães e os pais de adolescentes e jovens adultos que, como os da série, costumam sair à noite.
Os dois primeiros episódios (contém spoiler) são especialmente massacrantes porque mostram gente como os nossos filhos na figura daquelas meninas e meninos entusiasmados com a faculdade, com a vida e com a festa que estava por vir e onde se desenrolaria todo o horror.
Eu vi o meu filho no “esquenta” (ou na “resenha”) aqui em casa com o Bernardo e o André, colegas de longa data, nas cenas em que Mari (Manu Morelli) aparece em seu quarto com as amigas. As três se arrumam para a comemoração dos 22 anos da anfitriã na Kiss e, antes de sair, ela ganha dos pais um par de tênis de cano alto, que adora e já bota no pé.
A identificação com meu filho foi imediata por causa de detalhes e coincidências como a do sapato que ele estreou há alguns anos em uma festa de formatura (tipo de noitada, aliás, que é um pesadelo em termos de preocupação materna). Ele tem esse sapato até hoje.
Vendo a série a gente vai se reconhecendo nos pais e se apegando aos filhos, até que a história da tragédia começa a ser contada. Aí já era. A partir do momento em que a Kiss pega fogo, é gatilho atrás de gatilho. Não é fácil ver meu filho e seus amigos, quer dizer, Mari e suas amigas, desesperadas ao tentar escapar das chamas que caíam do teto da boate como mísseis em um labirinto escuro, superlotado e com um funcionário que dizia “sem a comanda ninguém sai”.
O que se passa a partir de então, sempre com a câmera em ritmo frenético, quase estonteante, é para os fortes. As cenas da TV já se fundem à minha realidade e centenas de amigos do meu filho, inclusive um ator bem parecido com ele, lutam em meio às chamas, inalam a fumaça tóxica, são pisoteados, morrem. Morrem porque foram a uma festa, como tantas outras.
A ansiedade, o mal-estar e a sensação de que vai ser difícil chegar até o quinto episódio aumentam assim que caminhões frigoríficos começam a estacionar na porta da boate para levar embora os corpos dos jovens, depois colocados lado a lado em um ginásio para que sejam reconhecidos pelos pais. Olha aquela menina ali, parece muito uma que já veio aqui em casa. É incômodo. Dói.
Não há uma escala objetiva para níveis de dor mas algumas cenas traduzem toda insegurança de quem fica em casa enquanto uma pessoa amada passa a madrugada fora. Quando a notícia da tragédia começa a se espalhar pela cidade, luzes se acendem em várias janelas dos prédio de Santa Maria. São pais desesperados ligando para os filhos, para os amigos dos filhos, para outros pais.
Neste momento, a sensação à frente da TV é a de que, basta, não dá mais para continuar a ver aquele pesadelo da vida real. Na boate em cinzas, os identificadores de chamada de vários celulares perdidos na luta pela vida anunciam quem está ligando para jamais ser atendido: “Mãe”. É punk. Se você tem filho na casa dos 20 anos e está interessado em assistir à série, prepare-se. É por sua conta e risco.