De ‘Sex and the City’ a ‘Rebelde’, remakes tentam consertar erros sobre LGBTs


Por Folhapress Publicado 02/02/2022
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Reprodução: Divulgação

Num internato no México, uma estudante brasileira dá as boas-vindas aos alunos recém-chegados e logo é corrigida por um deles. “Sejam todes bem-vindes. Estamos na terceira década do século 21”, diz o jovem, deixando a frase na linguagem neutra para contemplar os estudantes não binários –isto é, que não se identificam integralmente com o gênero masculino nem com o feminino.


Num restaurante luxuoso de Nova York, um grupo de amigas de 50 e poucos anos bate papo enquanto toma café da manhã. “Não dá para continuar sendo quem éramos, certo?”, sugere uma delas, uma advogada prestes a começar uma especialização em direitos humanos e engatar um relacionamento com uma personagem não binária.


Cenas como essas poderiam ter saído dos roteiros de seriados como “Sex Education” e “A Vida Sexual das Universitárias”, lançados recentemente já mergulhados em questões de gênero e sexualidade. Mas elas fazem parte dos revivals de “Rebelde” e “And Just Like That”, que retoma “Sex and the City”, na esteira de uma explosão de reboots e remakes que precisam enfrentar um problema que eles próprios criaram no passado –a falta de diversidade.


Quando foram lançadas, entre o fim da década de 1990 e o início dos anos 2000, essas produções tinham pouca ou nenhuma preocupação com representatividade. No meio dos anos 1990, existiam só 12 personagens LGBTQIA+ na TV, contra os 360 de hoje, de acordo com a pesquisa Where We Are on TV, da ONG americana Glaad, que monitora anualmente como a comunidade tem sido representada na mídia.


Ao retornar, porém, esses seriados encontram um mundo em que pessoas LGBTQIA+ querem ser vistas –ou melhor, bem-vistas– nas telas. O problema é que, para atender à demanda, algumas produções acabam por criar personagens sem profundidade, que, tratados como cotas, servem só para alavancar a trajetória de outras figuras e encher os bolsos das emissoras com o chamado “pink money”.


É que não basta um revival ter personagens coloridos. Suas histórias precisam ser complexas como as de qualquer outra figura. A avaliação é de Michel Carvalho, roteirista com trabalhos na Globo e na Netflix e antropólogo com formação na Universidade Federal do Rio de Janeiro.


“A palavra que define um bom personagem LGBTQIA+ é subjetividade”, afirma. “Todo personagem precisa ter um interesse e uma agenda com questões próprias, mas muitas vezes personagens diversos são planificados, ou seja, a subjetividade deles é regida por apenas um aspecto –o fato de ele ser trans, ou negro, ou gay.”


É o que ocorre no revival de “Sex and the City”, analisa o roteirista. Ao tentar tirar suas protagonistas de uma bolha glamorosa e heteronormativa para envolver as personagens em narrativas com diversidade, o seriado acabou criticado por apresentar figuras estereotipadas.


Che Diaz, por exemplo, é retratada de forma caricata. A personagem se identifica como queer e não binária, tem ascendência mexicana, fuma maconha e faz sexo casual. Sem conflitos próprios, o combo de diversidade que Diaz carrega serve só para desconstruir o trio de mulheres brancas, cisgênero e até então heterossexuais formado pelas personagens principais.


“O reboot cria um choque entre as protagonistas e o que é contemporâneo. Até é um conflito interessante, mas serve para aprofundar e construir a subjetividade de quem? Da não binária? Não, das personagens principais. É como se Diaz não tivesse vida própria. Parece muito mais um projeto caça-pauta do que qualquer outra coisa”, diz Carvalho.


Embora seja mais visível no streaming, uma indústria que cresce a todo vapor, a estratégia também tem sido adotada no cinema. Prova disso é o remake de “A Bela e a Fera” com atores de carne e osso, em que LeFou é gay, e somente gay, sem nenhuma outra função narrativa além de trazer à produção representatividade, ou pelo menos tentar, já que o personagem detonou críticas de que era estereotipado.


Outro reboot de série rechaçado nas redes sociais é “Charmed – Nova Geração”, que acabou criando personagens caricatos ao tentar solucionar quase que com um “check list” as lacunas de diversidade sexual, racial e de gênero da versão original, de 1998.


Raina Deerwater, pesquisadora do Glaad, concorda que uma representação efetiva precisa ser mais densa. Ela sugere perguntas que devem ser feitas para analisar a qualidade de um personagem LGBTQIA+.


“Temos de questionar se eles têm suas próprias histórias e não estão a serviço de personagens heterossexuais ou cisgênero. Questionar se são tratados com o mesmo respeito que seus colegas, se podem contar a própria história, se têm os mesmos altos e baixos, os mesmos romances, as mesmas diversões que os heterossexuais.”


Há produções que cumprem tais requisitos. É o caso da releitura da Netflix para o desenho “She-Ra e as Princesas do Poder”, em que a protagonista praticamente salva o mundo tascando um beijo em outra personagem feminina, Felina, e de “High School Musical: The Musical: The Series”, que retornou com um casal gay depois de ter forçado a heterossexualidade de um coprotagonista na trilogia original de filmes.


Mesmo “The L Word”, que já era centrada em personagens lésbicas em 2004, quando estreou, incorporou no remake “Geração Q” um personagem transgênero e bissexual com conflitos que vão além de sua identidade de gênero e de sua orientação sexual, assim como “One Day at a Time”, que voltou ao ar 33 anos depois do encerramento de sua primeira versão, desta vez com a filha da protagonista se assumindo lésbica e namorando uma personagem não binária.


O reboot de “Rebelde”, lançado neste ano, teve o mesmo cuidado. A atriz Giovanna Grigio, que interpretou uma personagem bissexual em “Malhação” e agora vive outra, Emilia, pede que os roteiristas vão além do cumprimento da tabela. “Amo na história da Emilia que sua sexualidade é apenas um detalhe. Ela é uma menina cheia de conflitos, vivendo com intensidade a adolescência, lidando com pressões, encontrando o amor, se questionando enquanto pessoa”, diz.


Carvalho, o roteirista, afirma que a complexidade nasce a partir do momento em que certas convenções sobre a comunidade LGBTQIA+ na TV são quebradas. “Já vimos a narrativa da saída do armário, de se apaixonar pelo melhor amigo, de não se aceitar, de sofrer homofobia. Quando a gente desestrutura essas convenções, complexificamos os personagens”, afirma.


Mas ainda há um longo caminho para que essas histórias cheguem à altura das que, por décadas, têm sido contadas sobre pessoas heterossexuais. Segundo Deerwater, a pesquisadora do Glaad, é preciso adicionar mais diversidade à diversidade.


“A TV precisa contar mais histórias de pessoas queer negras, indígenas, assexuais, intersexuais, não binárias, de corpos diversos, dos que vivem com HIV. Histórias significativas, com personagens tridimensionais e com pessoas LGBTQIA+ não só na frente, mas atrás das câmeras.”