Pandemia muda relação de fashionistas com looks, que viram elemento de cura
A iminência da morte que veio com a Covid-19 alterou a relação dos jovens consumidores de moda que, no alto de seus looks mais bem produzidos, passaram a ver menos afetação no ato de se vestir.
Sabe o tipo de gente que te julga de cima a baixo e faz carão com aquela roupa confortável que você mais gosta? Datou, caiu em desuso. Das castas do comportamento mais cheias de julgamentos, a dos fashionistas sempre foi a que vomitava regras sobre a autoimagem, até a pandemia chegar, cerrar os looks no armário e ameaçar a existência.
A iminência da morte que veio com a Covid-19 alterou a relação dos jovens consumidores de moda que, no alto de seus looks mais bem produzidos, passaram a ver menos afetação no ato de se vestir.
Não que isso significasse passar dias a fio enfiado em pijamas, mas, de acordo com jovens ouvidos pela reportagem nos corredores da São Paulo Fashion Week, a roupa passou a ser um elemento de cura, às vezes só de divertimento, mas sempre um meio de manter a sanidade nos dias mais sofridos.
O agora estilista Augusto Paz, de 29 anos, trabalhava com redes sociais até que foi diagnosticado com burnout. Em meio ao isolamento, largou tudo para resgatar o sonho de produzir as próprias roupas de crochê e resolveu abrir sua marca homônima quase como uma “meditação involuntária”. Deu certo.
“Alterou tudo, não só minha roupa, mas meu estilo de vida. A gente gosta é de ver gente, então, passei a me vestir como estivesse com as pessoas e, ainda, consegui trabalhar com isso”, explica.
Ele já teve de contratar um ajudante para dar conta dos pedidos de seus looks crochetados feitos à mão que começam em R$ 900. “Foi um grande processo de cura.”
Para a estudante de moda Giovanna Daurizio, de 24 anos, a pandemia fez com que se libertasse da vergonha e soltasse o que estava dentro dela, “sem medo do julgamento das pessoas”.
Ela passou a usar salto, mesmo se sentindo alta demais, e transparências, mesmo que não se sentisse segura. “Via muita coisa ruim, o medo da morte rondando. Pensei ‘a gente só vive uma vez'”, diz, exibindo o salto agulha e o colo à mostra.
Como se também funcionasse como equalizador do estilo, a pandemia baixou o tom de quem se via montado demais. O artista multimídia Davüii Costa, de 21 anos, diz estar mais básico do que antes, ainda que, no look escolhido para os corredores da SPFW, a estola de pele falsa feita chapéu por ele atraísse os olhares mais curiosos.
“Estou bem menos extravagante. O período de reclusão deixou todos mais contidos, também na forma com a qual performamos no dia a dia. Mas, hoje foi importante sair da caixa novamente”, diz, apontando o enfeite de cabeça combinado ao sobretudo.
O escritor Hector Bisi, de 53 anos, não esperou a pandemia passar e não quis ser picado pelo bicho do pijama, vendido como último grito de estilo nesses tempos.
Na ponte aérea entre Paris e São Paulo, se divertiu comprando ternos para deixar guardados até que pudesse sair, “porque essa história de novo normal ser moletom, ‘pelamordedeus’, não dá”.
Enquanto trabalhava de casa devidamente trajado com casacos pesados de um dos seus estilistas favoritos, João Pimenta, lançou o livro “Rue des Mauvais Garçons”, ou rua dos meninos malvados, em que, ele diz, resume o estado de letargia de estilo.
O texto trata das disputas entre uma gangue imaginária de dândis que mata quem não se veste de acordo com o padrão deles e uma outra, bondosa, cujo propósito é mandar os “mal vestidos” para um lugar de “elegantização”. “Acho que me visto melhor depois disso.”
Refletindo a respeito do próprio círculo de amigos e da vida de looks suntuosos, a drag queen Salete Campari, uma das damas da noite paulistana, diz que passou “a conhecer de verdade quem são os amigos” quando se viu sem balada e convite VIP para distribuir aos outros.
“Mais do que minha roupa, comecei a trabalhar internamente quem eu não quero quando a pandemia passar. Até o meu vestir mudou nessa descoberta”, reflete, “mais básica”, com máscara transparente e look de oncinha.
A maior dúvida de quem curte uns panos grifados parece ser o limite entre sanar o desejo de vestir looks poderosos ou entrar na corrente da roupa para ficar em casa, que fez a festa do varejo de moda nos últimos anos.
Diretor de comunicação e diversidade da agência Leo Burnett Tailor Made, Jeff Martins, de 32 anos, diz que via muita gente pensando mais em conforto, mas preferiu fazer o caminho inverso pela própria saúde mental.
“Precisava me sentir bem. No geral, acho que todos ficaram mais despreocupados com o que vestir e pudemos pensar mais no próprio conforto. Mas, ao mesmo tempo, caiu por terra aquela ideia de que a seriedade tem a ver com looks sérios. Fazer coisas sérias e ser competente não tem nada a ver com a roupa”, diz, trajado com costume de jacquard.
Meia maratonista e modelo, o haitiano Jean Woolmay Denson, de 25 anos, crê que, por ora, a pandemia pôs muita gente em looks “oversized”, “porque muita gente ganhou peso e fica querendo disfarçar”. “Uma bobagem. Logo, logo vai estar todo mundo mostrando o corpo”, diz.
A tendência do momento, todos os consultados afirmam, é deixar a imaginação fluir mais uma vez. “Não dá pra ficar com medo do julgamento dos outros. A gente ficou muito tempo preso, sem se ver.”
“Decidi usar tudo estampado, porque o negócio é abusar da criatividade. Qualquer saída agora é um look”, brinca a modelo e tiktoker, nova profissão alçada à fama durante a clausura, Mirella Qualha, de 20 anos.
É que, por mais aberta às diferenças que a moda se apresente, o close, esse parece à prova de qualquer choque cultural e não deve ser sepultado assim tão cedo.