‘Gênero Queer’, livro mais banido dos EUA, narra vida não binária e chega ao Brasil
A história é uma autobiografia confessional, enfurnada em angústia e dúvidas, sobre o processo que fez Kobabe se entender como uma pessoa não binária, ou seja, que não se identifica nem com o gênero masculino nem com o feminino.
“Será que eu me apresento pra essa galera usando meus pronomes?”, se pergunta Maia Kobabe antes de começar a dar um curso para adolescentes. “Queria não temer que a minha identidade soasse politizada demais em sala de aula.”
Bem, as reverberações de sua identidade extrapolaram muito aquelas paredes. “Gênero Queer”, o quadrinho que contém essa cena curta, foi o campeão entre os livros mais banidos de bibliotecas americanas em 2021, e as contestações à obra não arrefeceram.
A história é uma autobiografia confessional, enfurnada em angústia e dúvidas, sobre o processo que fez Kobabe se entender como uma pessoa não binária, ou seja, que não se identifica nem com o gênero masculino nem com o feminino.
Agora leitores brasileiros de todo gênero terão chance de ver com seus próprios olhos o que pode haver de tão escandaloso no livro, com a edição que a Tinta-da-China acaba de tirar do forno.
De tracejado atraente, linguagem franca e referências pop, o livro acompanha os périplos de uma infância e adolescência marcada pelas sensações de deslocamento e autorrejeição –e o constante receio de incomodar demais os outros com a busca pela própria identidade.
Por essas características, é uma obra que transita bem entre jovens, causando furor entre pais que demandaram que ela fosse retirada de bibliotecas públicas e escolares. Mas Kobabe afirma que o público-alvo que tinha em mente ao escrever não era exatamente esse.
“Escrevi esse livro, acima de tudo, para os meus pais”, afirma em entrevista à Folha. “Nos meus 20 anos, eu estava em conflito para sair do armário como uma pessoa não binária e explicar o que gênero significava para mim. Decidi escrever esse livro para tentar me comunicar com a minha família, para que me entendessem num nível mais profundo.”
Também desejava que o livro fosse útil para que outras pessoas trans e não binárias começassem a conversar sobre sua identidade com seus entes queridos, aponta Kobabe, que julga a obra apropriada para todo leitor acima do ensino médio.
Um dos argumentos comuns entre os americanos que se revoltaram contra o livro é que ele contém trechos de forte teor sexual, o que é verdade. “Se o livro fosse feito sem o vibrador de cinta, ele não seria contestado”, apontou uma mãe residente na Flórida, Jennifer Pippin, a uma reportagem do Washington Post.
A cena a que ela se refere mostra Kobabe, com um pênis de borracha acoplado ao corpo, recebendo sexo oral de sua então namorada, testando que tipo de experiência sexual poderia ser aprazível depois de anos de aversão ao envolvimento íntimo.
Não há nudez nesta cena, mas sim em outras partes do livro que trazem fantasias com homens de genitais à mostra e uma cena excruciante envolvendo o primeiro exame papanicolau de Kobabe.
Erotismo, contudo, passa longe de tomar o primeiro plano de “Gênero Queer”. É uma exploração, antes de tudo, existencial.
“No ensino médio comecei a criar uma teoria de que tinha nascido com duas meias almas –uma feminina e uma masculina”, narra. “Eu inventei e até dei um nome a um gêmeo perdido. Ele achava que deveria ser menina. Eu queria poder encontrá-lo, nós iríamos finalmente nos sentir como duas pessoas completas.”
Algo resumido com uma sucinta anotação em seu diário, feita aos 15 anos. “Não quero ser menina.
Também não quero ser menino. Tudo o que eu quero é ser eu.”
A palavra que Kobabe encontra para definir o processo criativo do livro é “catártico”. “Eu sinto que me entendo hoje muito melhor como pessoa. Estou mais em paz agora, mais confortável em me mover pelo mundo.”
São palavras íntimas para definir uma obra com trepidações de alcance internacional. A graphic novel se tornou símbolo da crise de banimento de livros nos Estados Unidos, um movimento que atingiu seu ápice em décadas, chegando a exigir que 2.571 títulos fossem retirados de bibliotecas no ano passado, segundo levantamento de uma instituição de defesa da liberdade de expressão.
Essas pesquisas também mostram que o cerceamento se volta principalmente a obras de temática racial, como “O Olho Mais Azul”, de Toni Morrison, e LGBTQIA+, como “Este Livro é Gay”, de Juno Dawson.
“Tenho consciência de que esses ataques não refletem meu caráter ou a qualidade do meu trabalho”, afirma Kobabe. “São parte de um esforço organizado e sistemático de apagar vozes queer e trans da esfera pública, para limitar a capacidade dos jovens de acessar informações sobre suas próprias identidades.”
Ou seja, Kobabe tenta não levar para o pessoal. Até porque tem certeza absoluta de que ampliou seu leitorado por causa desses vetos. “Recebi muitos emails de pessoas que dizem que ouviram falar do meu livro por causa de uma contestação, que se sentiram inspiradas a sair de casa e comprar.”
Não é raro mesmo que essas tentativas de censura produzam efeito reverso. Para usar um caso brasileiro recente, a retirada de um livro de Marçal Aquino da lista do vestibular de uma universidade privada goiana fez com que o romance, “Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios”, ficasse entre os mais vendidos da Amazon naquela semana.
Nos Estados Unidos, bibliotecários e professores se organizaram contra o cerco, distribuindo em locais públicos os livros que foram banidos de sua região. É o que lembra o editor de Kobabe no Brasil, Paulo Werneck, que foi atrás da publicação de “Gênero Queer” justamente por causa das contestações.
“Nos Estados Unidos, garantir acesso aos livros virou uma causa nacional”, afirma. “E a censura à liberdade de expressão sempre foi uma preocupação permanente do nosso projeto.”
A tarefa primordial dos bibliotecários, continua o editor, é pôr à disposição livros a que, normalmente, os jovens não teriam acesso. E isso pode conectar pessoas que, normalmente, não se aproximariam, conforme lembra Kobabe.
“Por muito tempo, senti muita solidão em minha confusão de gênero”, afirma. “Publicar ‘Gênero Queer’ me fez perceber que sou parte de uma comunidade ampla, vibrante, maravilhosa. Apesar de todo o drama da mídia, meu arrependimento em publicar esse livro é zero. É uma das coisas mais positivas que já fiz na vida.”
GÊNERO QUEER
Preço R$ 99 (240 págs.)Autoria Maia Kobabe
Editora Tinta-da-China Brasil
Tradução Clara Rellstab