Entenda o que leva alguém a gastar mais de R$ 9.000 num tênis sujo da Balenciaga
Depois do alvoroço provocado pelos Paris Sneakers da Balenciaga na semana passada, é a vez de a
Gucci e a Adidas causarem barulho. Numa parceria, as marcas criaram um guarda-chuva que não protege da chuva, à venda por cerca de R$ 6.400.
Não é difícil entender por que esse tipo de notícia chama a atenção nas redes sociais. Chacota na internet, os tais Paris Sneakers, por exemplo, são um modelo de tênis caindo aos pedaços, com rabiscos e tecido rasgado, num visual que remete à sujeira e chega a custar mais de R$ 9.000.
Bolsas em formato de saco de lixo, casacos furados e botas com respingos de tinta são outros itens de grifes famosas que também causaram polêmica e uma enxurrada de memes quando foram divulgados, tempos atrás.
Isso porque não é todo dia que vemos roupas e acessórios capengas ganharem o status de luxo e, principalmente, custarem milhares de dólares.
Mas algumas perguntas surgem no rastro desse burburinho. Por que uma grife lança peças que nada parecem ter a ver com elegância? Quem as compra? E por quê?
A influenciadora Malu Borges, que no fim do ano passado viralizou ao exibir uma bolsa da Bottega Veneta que é similar a uma trouxinha de toalha enrolada, é uma dessas pessoas que não só calçariam os tênis destruídos da Balenciaga, como também cogitam comprar um par.
Sua única condição para a compra é que o sapato custe -sem contar o valor de taxas extras, como frete e importação- até cerca de R$ 4.900, afirma a influenciadora, na expectativa de que caiam os preços divulgados pela marca, que ainda não iniciou as vendas da linha nova.
“Eu tenho um estilo mais chamativo. Me apaixono por itens diferentes. Gosto de sair da caixa, ver a reação das pessoas, fazer um vídeo do look”, afirma ela. “Poderia muito bem montar looks básicos, ou neutros. Sei que agradaria à grande massa, mas não é disso que eu gosto.”
De cor rosa-choque e tecido atoalhado, a bolsa da Bottega Veneta exibida por Borges num vídeo viral do TikTok rendeu vários memes. Na época, a peça era vendida no Brasil por quase R$ 25 mil, na Farfetch -a influenciadora diz ter comprado a sua em Londres, mas não revelou o valor.
Memes à parte, quem costuma comprar roupas na Bottega Veneta sabe bem identificar o luxo que há por trás de uma bolsa da marca -mesmo que ela lembre uma toalha de banho. Ou pelo menos é o que diz Borges ao falar sobre a peça, que considera seu “amuleto da sorte”.
Outra bolsa da grife italiana que rende memes é a The Mini Twist, vendida por mais de R$ 11 mil e com aspecto semelhante a um saco de lixo preto.
Ainda que não divulgue dados de busca e compra desse item, um porta-voz da Farfetch, revendedora da marca no Brasil, afirma que a bolsa faz, sim, boas vendas no país.
“O que as pessoas compram, na verdade, é a experiência de ter algo inexplicável”, afirma Hilaine Yaccoub, antropóloga especializada em consumo. “Não existe nenhuma linha [de argumentação] racional que explique esse tipo de compra. É justamente isso que faz barulho. Compram a incompreensão.”
Assim, ter no guarda-roupa um tênis de uma das maiores grifes do planeta que, além de ser de uma edição limitada, foi assunto em jornais do mundo todo, seria o real objetivo de quem gasta milhares em peças como essas. A busca não é pelo produto em si, mas pelo efeito que ele causa, afirma Yaccoub.
A antropóloga diz que o cerne da coisa é uma distinção social. Itens de luxo que causam burburinho servem como prêmios de exclusividade para o comprador, que tem a chance de sentir que pertence a um grupo seleto de pessoas. “O status é só o pico do iceberg”, afirma Yaccoub.
Logo após a viralização dos Paris Sneakers, houve quem dissesse que a Balenciaga estava promovendo um tipo de fetichização da pobreza, ou glamorização da miséria, considerando que, no mundo, inúmeras pessoas não têm condições de comprar roupas de boa qualidade nem de manter limpas suas peças.
Yaccoub diz, porém, que o debate de classes até está incluído no debate, mas não exatamente dessa maneira. Segundo ela, remete mais à ultravalorização de um feito raro -e caro- do que à chacota de uma realidade.
“Vivemos a era do causar”, diz a antropóloga. “As pessoas querem comprar algo que será transformado em conteúdo e, com isso, ganhar a chance de aparecer e se destacar.”
Como exemplo, Yaccoub lembra um dos itens vendidos em 2015 pela loja oficial do Rock in Rio, o Lama 85, um potinho de amontoado de lama da primeira edição do festival vendido por R$ 185.
A antropóloga diz ainda que, em casos como o dos Paris Sneakers, marcas apelam para discussões que já estão na boca do povo. A Balenciaga, por exemplo, associou aos tênis um discurso de durabilidade, apresentando o calçado como uma peça para “durar uma vida inteira”. É o que a antropóloga chama de “pegar carona naquilo que a própria marca não prega na essência”.
Outro caso de oportunismo, segundo Yaccoub, aconteceu anos atrás, quando a grife brasileira Osklen lançou uma camiseta estampada com a palavra “favela”, gerando polêmica.
Está enganado, porém, quem pensa que polêmica fashionista é sinônimo de se dar mal. Hoje, esse tipo de agitação massificada em torno de um assunto se tornou inclusive uma estratégia, afirma Fernando Hage, coordenador do curso de moda da Fundação Armando Álvares Penteado, a Faap, em São Paulo.
Se até os anos 2000 os desfiles eram a principal vitrine de apresentação de coleções, a era atual aponta para as redes sociais como a porta para vender roupas e acessórios. Segundo Hage, a razão disso é não só a expansão da internet, como também um mercado cada vez mais concorrido, em que chocar se tornou fundamental para lucrar.
“Já estamos acostumados a ver Crocs, mas quando vemos um Crocs de salto alto, estranhamos. É por isso que as marcas apostam em modelos disruptivos”, diz ele. “Querem provocar estranhamento. E quem compra isso quer emular um vanguardismo.”