Como é cortar o cabelo em um salão feminista

"Trabalhamos com cabelos reais para pessoas reais. Não fazemos alisamento, nem progressiva."


Por Folhapress Publicado 25/10/2023
Ouvir: 00:00
Reprodução: Pixabay

Relaxamento, alisamento, progressiva. O palavreado que remete à ideia de domar os cabelos não faz parte do vocabulário da cabeleireira Milagros Olmos. Aliás, melhor seria dizer peluqueira, já que Milly, como ela gosta de ser chamada, é argentina.


Ela comanda o Espacio Secreto, um salão de beleza feminista nos Jardins, em São Paulo. Antes um bingo clandestino, a casinha de dois andares reformada por ela e pelo namorado agora abriga prateleiras de produtos naturais —todos veganos—, cartazes em favor do direito ao aborto, quadros com a anatomia da vagina e bandeiras com os dizeres “fogo no patriarcado”. As funcionárias são todas mulheres.


“Trabalhamos com cabelos reais para pessoas reais. Não fazemos alisamento, nem progressiva.

Ajudamos o cliente a lidar com o cabelo natural e ninguém vai te obrigar a colorir um branco”, diz Milly, salpicando umas palavrinhas em espanhol.


Não há vitrines para os transeuntes da alameda Franca verem os cortes feitos pelas cabeleireiras, nem pilhas de revistas de fofoca velhas com horóscopos datados —embora astrologia e mapas astrais sejam conversas correntes ali.


O salão tem até um quê de educativo, tanto pela veia feminista, que acolhe até as crianças com um espaço cheio de livros e brinquedos, quanto pela paciência em ensinar as clientes sobre como funcionam as madeixas naturais.


Cabeleireira desde os 18 anos, quando sua sogra pagou um curso para ela, Milly é rápida no diagnóstico das particularidades dos fios. Durante a visita da reportagem, ela reparou de cara a diferença de textura do topo do cabelo da repórter, cacheado, para a base, lisa, e indagou se a preferência era por ressaltar os cachos ou por abaixar o volume geral.


É diferente, mesmo, dos cabeleireiros regulares, que tratam a falta de uniformidade, os redemoinhos e o volume como um problema a ser resolvido e não algo que pode ser incorporado ao estilo.


Não é incomum achar profissionais que vejam nos fios brancos um problema ou que cravem que determinados cortes não servem para rostos redondos. Franjas, então, são uma polêmica à parte, consideradas proibidas para cacheadas e para mulheres mais velhas.


Mas, para Milly, o frizz e o branco compõem o visual e, diz ela, isso faz parte de um movimento maior de mulheres se libertando de padrões capilares opressores.


Foi de uma libertação que nasceu o salão, conta a peluqueira. Ela estava em um relacionamento, nas suas palavras, tóxico, com um antigo sócio. Com dois filhos pequenos para cuidar e a autoestima destroçada, ela decidiu cair fora da sociedade e do relacionamento.”Ficar em casa chorando não era uma opção”, diz, e assim nasceu o Espacio Secreto.


O feminismo de Milly não é só decorativo. Depois de algum tempo cortando as madeixas de clientes antigas em casa, ela notou que o ambiente aconchegante apelava a elas. “Era um espaço em que você não precisava ir arrumado”, conta.


Ela afirma que existe uma certa cultura de montação nos salões —inclusive esses moderninhos, de onde saem pessoas com cachos multicoloridos e coturnos com preço de aluguéis.


“Trabalhei em grandes salões famosos em que você precisava ir montada, alternativa, estilosa. E se você não quiser? E se seu cabelo cresceu e você precisa cortar?”, diz ela. Veio um clique que seu próximo empreendimento precisava abraçar a ideia de informalidade e acolhimento. Nas palavras de Milly, “um salão para quem não gosta de salão”.


A peluqueira organizou as cadeiras próximas umas das outras, apesar do espaço amplo, para garantir um ambiente aconchegante. Diz ela que funciona, e que as clientes conversam entre si e fazem amizade.


Um velho hábito de salões se conserva ali, apesar do tom revolucionário com que Milly pinta o empreendimento: a fofoca. “Fico sabendo de coisas antes dos próprios maridos, fico sabendo de gravidez antes da família”, afirma. “Mas a fofoca do salão fica no salão.”


Ela avalia que essa abertura para conversa aparece até nos cortes.


Milly lembra uma história de duas clientes, um casal, que foram juntas retocar o corte. Elas passavam por um processo difícil de inseminação artificial e uma delas, finalizado o corte, deu um grito.

Emocionada, ela disse ter reencontrado a própria imagem. Milly conta que, anos depois, a cliente ainda mantém o corte daquela ocasião e que sua esposa mandou mensagens agradecendo à cabeleireira pelo trabalho, que melhorou até a vida afetiva do casal.


“Uma pessoa não chega aqui e pede um corte na altura dos ombros”, diz. “Ela conta que está deprimida, no puerpério e precisa de praticidade porque não consegue cuidar do cabelo.” Cabe a Milly traduzir as necessidades em um estilo que faça sentido para cada uma.


O preço, porém, pode assustar os desacostumados com salões da moda. Milly cobra R$ 250 no primeiro corte. E é o preço, diz ela, não a indumentária feminista, que afasta os homens. “Eles não aceitam pagar tanto.”