Longa descola de Hebe a pecha de fútil e traz à tona sua face engajada

A biografia atravessa o período em que a apresentadora, depois dos conflitos com a Bandeirantes, assina com o SBT. Na mesma época, foi ameaçada de processo por Ulysses Guimarães, um dos principais articuladores da Constituição de 1988, ao criticar, ao vivo, os congressistas.


Por Folhapress Publicado 26/09/2019
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Reprodução (Divulgação)

 “Ué, a censura não acabou no Brasil?”, pergunta, irônica, a personagem de Hebe Camargo numa das primeiras cenas do filme sobre a apresentadora que chega agora aos cinemas.

Então beirando os 60 anos, ela é impedida de entrevistar uma drag queen pela produção de seu programa de entrevistas, na época da transição para a democracia, a atração sofria ameaças dos censores do governo, que não toleravam entrevistados como gays, transexuais ou mesmo a desbocada Dercy Gonçalves.

A cena, ambientada nos anos 1980 na ficção, ganhou uma atualidade inesperada com uma sequência de episódios de censura protagonizadas pelo governo nos últimos meses.

Um edital para TVs públicas que contemplava séries com temática LGBT foi suspenso no final de agosto, depois de Jair Bolsonaro criticar os projetos no Facebook. O prefeito carioca Marcelo Crivella causou tumulto na Bienal do Livro, no início do mês, ao tentar retirar dos estandes da feira uma história em quadrinhos com um beijo gay.

Andréa Beltrão, que platinou os fios e aprendeu a reproduzir os erres pronunciados de Hebe para dar vida a ela no filme, conta que não esperava que o longa fosse ganhar tanto frescor quando disse sim para o papel, há quatro anos.

“De repente, tsunamis”, lembra. “E o filme agora assume um lugar de fala muito forte, pelas mulheres, pelos gays, pela liberdade de expressão.”

De acordo com Beltrão, a censura, aliás, não é o único tema de “Hebe – A Estrela do Brasil” que ecoa os tempos atuais.

A Hebe criada pela roteirista Carolina Kotscho e pelo diretor Maurício Farias se descola da pecha de fútil para se tornar uma “subversiva com um microfone”, que defende pacientes de Aids em rede nacional e peita diretores e executivos.

A biografia atravessa o período em que a apresentadora, depois dos conflitos com a Bandeirantes, assina com o SBT. Na mesma época, foi ameaçada de processo por Ulysses Guimarães, um dos principais articuladores da Constituição de 1988, ao criticar, ao vivo, os congressistas.

O conflito é só um dos muitos paradoxos da apresentadora explorados pelo filme. Hebe apoiou o golpe militar e era malufista assumida, mas lutou contra a censura e a corrupção. Devota de Nossa Senhora Aparecida, defendia o aborto.

E, mesmo que bem-sucedida e independente, se sujeitou a um relacionamento abusivo, seu segundo marido, como mostra o filme, era possessivo e violento.

“Hebe falava, via que estava errada, mudava de ideia, comprava briga. Acho que ela é a maior prova de que defender o que é certo não é uma questão de ideologia, mas de caráter”, opina Kotscho.

“Minha tia sofria de ‘sincericídio’, e era muito criticada por isso”, acrescenta Claudio Pessutti, sobrinho da apresentadora e um dos produtores do longa.

Mesmo que não seja essa a imagem de Hebe que ficou para a história, Kotscho reforça que todas as palavras que saem da boca de Beltrão foram em algum momento enunciadas pela dona do sofá mais famoso do Brasil.

Na pesquisa para o longa, a roteirista contou com a ajuda de duas grandes fãs da apresentadora, que colecionaram recortes sobre a sua carreira desde o seu início como crooner na noite paulistana.

O processo, aliás, ainda se desdobrou em uma série para a Globo, com estreia prevista para janeiro, e um documentário.

À frente dos três, Kotscho defende que Hebe é um antídoto para a polarização política de hoje. “A doença do mundo é que todo mundo tem que caber em uma caixinha. E ela não cabia em nenhuma.”