Família de entregador do Rappi morto em SP vai processar empresa, Uber e Samu

Dias foi socorrido pelos clientes do aplicativo de compras e entregas. Foram acionados o Corpo de Bombeiros, a Polícia Militar e o Samu, mas nenhum deles apareceu no local.O Rappi também foi comunicado sobre o estado de saúde de seu prestador de serviço.O entregador também teve negada uma corrida do motorista da Uber que o levaria ao hospital.


Por Folhapress Publicado 17/07/2019
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Reprodução (Divulgação)

A família de Thiago de Jesus Dias, 33, anunciou nesta quarta-feira (17) que vai ingressar com uma ação na Justiça para buscar reparação sobre a falta de prestação de socorro dos órgãos públicos de resgate no momento em que ele passava mal.

O entregador do Rappi teve uma piora repentina em seu quadro de saúde quando fazia a entrega de uma garrafa de vinho para quatro amigos em um prédio residencial de Perdizes, na zona oeste da capital paulista, no final da noite do último dia 6.

Caído sobre a calçada na entrada do prédio, Dias foi socorrido pelos clientes do aplicativo de compras e entregas. O grupo agasalhou a vítima com cobertores, deu água e tentou por várias vezes convencer os serviços de resgate de que o entregador precisava de ajuda.

Foram acionados o Corpo de Bombeiros, a Polícia Militar e o Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência), mas nenhum deles apareceu no local.

O Rappi também foi comunicado sobre o estado de saúde de seu prestador de serviço. A advogada Ana Luísa Ferreira Pinto, uma das pessoas que o socorria, recebeu a seguinte orientação do aplicativo.

“Sem qualquer sensibilidade, nos pediu para que déssemos baixa no pedido para que eles conseguissem avisar os próximos clientes que não receberiam seus produtos no horário previsto”, afirmou.

O entregador também teve negada uma corrida do motorista da Uber que o levaria ao hospital. O motorista cancelou o transporte com o entregador já deitado desacordado no banco de trás. Ele alegou que Dias sujaria o carro dele com urina, segundo relato de testemunhas.

Reportagem da Folha de S.Paulo publicada nesta quarta mostrou que a atitude do motorista do aplicativo será alvo de um inquérito policial aberto pela divisão de crimes contra o consumidor do DPPC (Departamento de Polícia de Proteção à Cidadania), sob o guarda-chuva da Polícia Civil.

O pedido para a abertura do inquérito foi feito pelo Procon-SP, órgão estadual de defesa do consumidor, que também notificou a Uber nesta quarta-feira (17) a descredenciar o motorista envolvido no caso e esclarecer quais são os protocolos internos de atendimento para passageiros que passam mal durante o transporte. O aplicativo terá 72 horas para se manifestar.

Dias só deixou a calçada do prédio quando um amigo seu chegou de carro para socorrê-lo até o Hospital das Clínicas. Morreu no dia 8, após ter morte cerebral em decorrência de um AVC (acidente vascular cerebral).

Daiane de Jesus Dias, 30, a irmã do entregador, disse que o Samu, a Uber e o Rappi serão processados pela família. “Eles foram negligentes e são responsáveis pela morte do meu irmão”, afirma.

A diarista também contou que, dois dias após a morte de Thiago, recebeu apenas a ligação de uma atendente do Rappi no celular do irmão com uma pergunta que deixou a família desolada. “Vocês conseguiram enterrar o Thiago com dignidade?”.

O entregador prestava serviços ao Rappi havia quase dois anos. Ele deixou a filha Brenda, de 6 anos, os pais e os três irmãos.

Omissão de socorro é crime previsto no Código Penal Brasileiro, e quem o comete pode ser penalizado com até 1 ano de prisão, além de multa. Ocorre quando uma pessoa deixa de ajudar alguém que está visivelmente passando mal (desacordado, por exemplo) e não comunica autoridades.

Para Márcio Barandier, presidente da Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados do Brasil, não é preciso ser ativo no resgate. “Nunca mexa na pessoa. Isso é função de médicos e bombeiros. Se você chama a ambulância, já está agindo corretamente.”

Uma pessoa, à luz da lei, pode negar socorro quando a ajuda acarreta risco –tentar salvar alguém que se afoga no mar revolto, por exemplo. No caso dos apps de transporte, diz Barandier, o motorista deve comunicar as autoridades e buscar auxílio médico.

O Brasil não tem, contudo, mecanismo como a Lei do Bom Samaritano, que vigora em parte dos EUA e protege de ações judiciais quem presta assistência inicial a vítimas com risco de morte.

OUTRO LADO
O Samu, a Uber e o Rappi não comentaram a intenção da família do entregador em processá-los na Justiça.

O Samu já havia informado que o chamado de Thiago chegou até sua central às 22h15 do dia 6, como dor de cabeça e classificado com prioridade média, recebendo monitoramento à distância até ser cancelado com a informação de que o paciente havia sido removido em carro particular.

O órgão ressaltou que abriu um procedimento para verificar todas as circunstâncias que envolveram o atendimento da vítima e, após sua conclusão, a direção do serviço disse que adotará as medidas cabíveis.

Os bombeiros e a Polícia Militar disseram que não receberam nenhum pedido de resgate para o entregador do Rappi.

O Samu tem obrigação legal de atender pessoas com complicações clínicas. O Corpo de Bombeiros diz que estão sob sua responsabilidade os casos que envolvem traumas e acidentes.

Já a Polícia Militar, quando acionada, isola a área e aciona o atendimento mais apropriado para cada caso.

O Rappi já havia informado que busca melhorias em seus procedimentos internos. A Uber não se manifestou sobre nenhum dos questionamentos da reportagem.

A OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo) classificou a morte do entregador como um resumo “do desmonte de políticas públicas somada, concomitantemente, à ampla fragilização das relações de trabalho no Brasil”.