Galvão Bueno, na Copa, é a voz do Brasil e um showman insubstituível
Quando um empate modorrento parecia inevitável, Galvão resumiu, numa única frase, tudo o que o torcedor pensava.
A voz é o caminho mais curto até a memória; um instrumento de poder –para um tenor lírico ou um narrador esportivo, que nos acompanha no tempo e convive em nossa intimidade, transformando em palavras a emoção de comemorar um gol.
“Ainda dá, dá para chegar no gol, claro que dá”, disse Galvão Bueno, segundos antes de narrar o gol que daria a vitória ao Brasil contra a Suíça. Quando um empate modorrento parecia inevitável, Galvão resumiu, numa única frase, tudo o que o torcedor pensava.
Espremido na posição de transmissão –que na Copa substitui as cabines, dando um ar ainda mais emocionante às partidas– o narrador cornetava a teimosia de Tite e a lentidão do ataque brasileiro.
Em sua última Copa do Mundo, Galvão é o principal personagem do Brasil no Qatar. Sua rouquidão é a memória nítida dos momentos gloriosos do esporte brasileiro. Nessa Copa, ele ainda tenta unir o Brasil, depois das eleições, dizendo que “não existem dois países”.
Quando inicia uma transmissão –”Bem, amigos da Rede Globo!”–, Galvão abre uma fresta no tempo presente, indicando o que há de comum a todos os telespectadores, a nacionalidade, o mesmo passado, compartilhado em comemorações e fracassos. Também nos remete à intimidade, a momentos vividos na companhia de amigos, de recordes olímpicos a eliminações dolorosas, como a do 7 a 1 na Copa de 2014.
Por isso, Galvão é protagonista em sua despedida da televisão. Ele tem o carisma que falta às novas gerações do futebol brasileiro. Afinal, os jogadores oscilam entre um comportamento anódino, alienados em suas mansões na Europa, e a distância irrestrita dos torcedores, num mundo que só cria barreiras entre os atletas e o povo.
Nascido no Rio de Janeiro em 1950, Carlos Eduardo dos Santos Galvão Bueno é tijucano, salgueirense e flamenguista. Iniciou a carreira em 1974 na Rádio Gazeta, onde chegou a cobrir a Copa daquele ano. Em 1977, passou dois meses na Record, ingressando em seguida na Band, onde narraria, três anos depois, sua primeira prova de Fórmula 1.
Em 1982, fez sua primeira Copa pela TV Globo, mas ainda não era o narrador principal, cargo ocupado à época por Luciano do Valle e, na edição de 1986, por Osmar Santos. Em 1990, assumiu a titularidade da função. Antes, já havia narrado a final da maratona dos Jogos de Los Angeles, quando a suíça Gabrielle Andersen, conseguiu completar a prova, mesmo extenuada, para delírio da torcida.
Com a Fórmula 1, cobriu dois dos três títulos de Nelson Piquet, além dos três campeonatos de Ayrton Senna. Galvão chegou a sair da Globo em 1992, mas voltou no ano seguinte, para se transformar na voz do tetra, em 1994 –e da cobertura da morte de Senna–, e do penta, em 2002. Galvão se tornou uma figura quimérica –incontornável para a televisão e com muitas controvérsias ao longo da carreira.
Galvão transmitirá sua última partida na Globo justo no auge de sua popularidade. Ao chamar o Olodum no pré-jogo da Seleção, logo o assunto se torna um dos mais comentados no Twitter. Mas nem sempre foi assim. Vaidosíssimo, o locutor sofreu com críticas do público pelo comportamento egoico, que se refletia em interrupções nas falas dos colegas de trabalho.
Em dado momento, o público amou detestar o jornalista, num ódio desmesurado. O estopim da campanha “Cala Boca, Galvão!” ocorreu na Copa de 2010, na África do Sul, quando o assunto se alastrou nas redes e foi parar até no New York Times. Antes, o locutor já encontrava dificuldades de trabalhar em estádios no Brasil. Durante as transmissões in loco, ouvíamos o som da massa proferindo vitupérios contra o narrador.
Como jornalista, Galvão também não passou impune a algumas críticas dos colegas de profissão. Uma delas foi a excessiva proximidade com as fontes, no caso de Senna, e o ufanismo, que alimentou suas narrações de jogos do Brasil. Se Galvão não foi exemplo cristalino da teoria jornalística, ele foi a figura responsável por formar gerações de narradores esportivos.
Em tempos mais recentes, virou influenciador digital e descobriu que sua fortuna poderia ser ainda maior. Bastava usar seus bordões para vender os produtos de sua vinícola no Rio Grande do Sul. Nas redes, passou a ostentar, sem tanta elegância, seu padrão de vida luxuoso.
Galvão tem consciência de que se tornou um grande personagem na vida cultural brasileira. Agora, seu rosto está até na traseira dos ônibus, em propagandas de sites de apostas. Nas Olimpíadas de Tóquio, a linguagem da influência chegou às transmissões. Como em cenas do YouTube, o locutor fazia caras e bocas nos estúdios para aumentar a audiência na internet.
Fora os jogos da Copa e os títulos de Senna, merecem destaque algumas narrações nas Olimpíadas. Em Atenas 2004, Galvão entoou o bordão “Giba neles!” no ouro da seleção masculina de vôlei contra a Itália. Quatro anos depois, em Pequim, ele testemunhou a medalha dourada de César Cielo nos 50 metros livre.
Também em 2008, Galvão acompanhou o recorde de Michael Phelps na prova dos cem metros borboleta. “Só um gênio para ganhar essa prova!”, ele dizia, enquanto o nadador empilhava suas oito medalhas de ouro. “Vai perder? Vai ganhar? Perdeu? Ganhou! Michael Phelps, na batida de mão!”. Versátil, podia narrar até as partidas de pingue-pongue.
No Rio, se emocionou com a cerimônia de abertura e foi às pistas, assistindo a Usain Bolt, da Jamaica, voar pela última vez. “Ninguém segura o Bolt! Ninguém segura o Bolt!”, ele gritava. “O homem é uma fera, uma lenda, um gênio do esporte!”. Naquele ano, Galvão ficaria enlouquecido com o ouro olímpico no futebol masculino e desempenharia papel central na cobertura do acidente da Chapecoense.
No Qatar, “vai se criando um clima terrível” com o fim de sua carreira na TV. Galvão foi ficando sozinho, sem a companhia dos amigos de sempre –Mauro Naves, Arnaldo Cezar Coelho, Tino Marcos, Walter Casagrande Jr, agora colunista deste jornal. O tempo passou, e a imprensa esportiva, fagocitada pelo entretenimento, já não é mais a mesma. Tampouco a TV aberta adotará o mesmo estilo de cobertura, porque já não vai ter a primazia nas transmissões.
Não há substituto para Galvão. Com inteligência e técnica, ele ditou o padrão da cobertura esportiva em seu tempo, encarnando um showman para narrar o drama diário de cada brasileiro –”em todas as suas emoções”.