Trinta anos após estreia de ‘Casseta & Planeta’, grupo diz que fez sucesso porque não poupava ninguém

Protagonizada por Helio De la Peña, a cena continua com Pelé (ele mesmo), tentando provar ser quem realmente é, um gancho para ser ridicularizado por um irredutível e caricato PM, que o chama de "negão" por mais duas vezes.


Por Folhapress Publicado 28/04/2022
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Reprodução: Divulgação

Ao volante de um reluzente carro conversível, Pelé é abordado por um policial militar nas ruas do Rio. ‘Aí, negão. Documento!”, exige o PM, no dialeto malandro carioca, para em seguida ameaçar “botar na caçapa” do camburão o Rei do Futebol.


Protagonizada por Helio De la Peña, a cena continua com Pelé (ele mesmo), tentando provar ser quem realmente é, um gancho para ser ridicularizado por um irredutível e caricato PM, que o chama de “negão” por mais duas vezes.


Com pouco mais de dois minutos, o vídeo foi exibido pelo Casseta & Planeta no início dos anos 2000 e traduziria, segundo os próprios ex-integrantes do grupo, toda a essência de seu humor. Se ainda estivesse no ar, o Casseta (para os íntimos), estaria completando 30 anos em 2022.


“A gente era uma metralhadora giratória de piadas. Não poupávamos ninguém, independentemente das nossas opiniões pessoais. Trabalhávamos em cima do humor e não havia vaidade”, afirma De la Peña. Em um bate-papo com a reportagem , ex-cassetas dizem que o segredo do sucesso do programa, exibido nas noites de terça-feira entre abril de 1992 e dezembro de 2010, foi justamente não baixar a cabeça para quem quer que fosse. A zoação, garantem, sempre foi ampla, geral e irrestrita.


Ter surgido para o mundo em tempos pré-cancelamento também fez toda a diferença, admitem.

“Naquela época as coisas eram bem diferentes. Não havia a força das redes sociais, nossa preocupação era apenas em saber se a qualidade era boa, e não com a patrulha para nos tolher”, afirma Marcelo Madureira.


Hubert vai na mesma linha. Intérprete de personagens como Devagar Franco (uma caricatura do então presidente Itamar Franco) e de Gavião Bueno (“Rrrrrronaldinhooo!”, bradava, empolgado, quase engolindo o microfone da TV Globo), ele defende que o programa entregava aquilo que o povo queria: uma salada variada e bem temperada de assuntos, que incluía política, costumes, novelas e futebol, sem que isso implicasse num humor “bonzinho e com conteúdo social”.


O mundo mudou nas ultimas décadas e eles sabem que, se ainda estivessem na ativa, suas piadas teriam de se adequar aos novos tempos. “O humor que não se adapta, morre. Comparo muito com a hipótese de que o Pelé hoje em dia não se daria bem no futebol. Mas se ele estivesse na ponta dos cascos e utilizasse das ferramentas do momento, poderia jogar bem. Claro que não podemos resgatar o humor dos anos 1990, mas estaríamos atualizados”, defende De la Peña.


Opinião semelhante à de Hubert, para quem o cancelamento não seria uma preocupação nos dias de hoje. “Não chegaria a esse ponto [de serem cancelados]. O tempo mudou, algumas piadas que antes não eram um problema hoje não seriam tão engraçadas. Mas a gente saberia como fazer”, aposta.


MORTE DE BUSSUNDA FOI BAQUE

O grande baque para os humoristas (e para o Brasil inteiro) veio em 2006. A equipe do programa acompanhava a seleção brasileira na Copa do Mundo da Alemanha, em clima de oba-oba e muitas graçolas sobre o mundo do futebol e seus personagens, até que veio a bomba: Bussunda havia sofrido um ataque cardíaco em Parsdorf (16 km de Munique). Acabou morrendo, gerou comoção nacional e deixou a equipe arrasada -e atônita.​


“Rolou um grande vazio entre nós. Ficamos perdidos e sem saber que atitude tomar, inclusive as mais imediatas como atender a imprensa. A gente contou com o apoio do Galvão Bueno, que tinha passado pela experiência traumática de perder o [Ayrton] Senna [em 1994]. Ele foi ao hotel nos orientar, pois não tínhamos noção do que fazer”, conta Helio.


Daquele momento em diante, a cobertura do Mundial acabou. Toda a equipe voltou ao Brasil, e o velório aconteceu um dia depois. O diretor do programa foi quem ficou responsável por montar a edição da terça-feira seguinte, que virou uma homenagem com os melhores momentos do comediante morto.


Na atração seguinte à da homenagem, o Brasil já havia perdido a Copa para a França e o pouco material que restava sobre as aventuras da equipe no Mundial foi para o lixo. O baixo astral se impôs e não fazia mais sentido exibir nada sem Bussunda, o maestro daquela banda.


“Foi uma situação inédita, pois tivemos de reescrever o programa que seria gravado na tarde e editado durante a noite anterior. Mas o conteúdo ficou divertido e ali tivemos a certeza de que não deveríamos parar. Foi um baque nós passarmos de sete para seis integrantes”, recorda Helio. “Preferimos continuar, apesar da grande perda para o Brasil, para o humor e para nós. Fomos em frente”, diz Hubert.


COMEDIANTES SOBRE CASSETA HOJE: ‘BOLSONARO ESTARIA SOFRENDO’
Para os integrantes do Casseta, os dois pontos altos da história do programa eram os quadros políticos e as sátiras de novelas. “Nunca vi na TV mundial acabar o capítulo da novela e entrar uma paródia imediata dela. Era uma coisa inusitada de um assunto que tinha acabado de rolar e que todo mundo havia assistido”, relembra Hubert.


Ele conta que alguns autores como Glória Perez e Manoel Carlos mandavam os capítulos antes para a trupe que, assim, tinha tempo para se caracterizar, maquiar e escrever as piadas sobre a continuação das cenas, no calor dos acontecimentos. “Ficávamos tentando parecer, pegar trejeitos dos personagens. Era realmente o ponto alto do Casseta”, lembra.


As paródias políticas do programa, que tinha como lema “humorismo-verdade, jornalismo-mentira”, também eram o ponto forte do humorístico -tanto que todos os presidentes do Brasil empossados enquanto a atração esteve no ar, independentemente de ideologia ou espectro político, foram “vítimas” de seu humor. Fosse quem fosse.


Em 1992, quando surgiram na TV, eles já começaram fazendo piadas nas ruas sobre o impeachment de Fernando Collor. Fernando Henrique Cardoso era chamado de “Viajando” Henrique; Itamar virou “Devagar” Franco, e Lula estava invariavelmente tomando uma birita -ninguém foi poupado.


E hoje continuaria assim, garantem. “Se ainda estivéssemos no ar, o Bolsonaro estaria sofrendo”, assegura Helio. Na visão do humorista, o presidente seria uma fonte inesgotável de zoeiras, já que “ele produz seu próprio material de stand-up comedy”.


Para Madureira, muito além de fazer rir, a atração contribuiu para a reflexão política do Brasil. “A gente conseguiu manter a população informada e despertar interesse sobre determinados assuntos que não eram abordados daquela forma”. O programa teve uma reencarnação, digamos assim, em 2012, mas não vingou. O “Casseta & Planeta Vai Fundo”, uma versão mais pop do humorístico, ficou apenas nove meses no ar.