‘Inventando Anna’ e ‘Golpista do Tinder’ puxam onda de estelionatários no streaming
A acusação? Lojistas do Mercado Municipal estão enganando clientes e vendendo sanduíches com ingredientes que não são os da marca anunciada, no que ficou conhecido como o golpe da mortadela.
Na semana passada, um novo tipo de golpe passou a aterrorizar a população da capital paulista. Praticado num dos maiores ícones arquitetônicos e turísticos de São Paulo, ele mobilizou fiscais e a imprensa, que agora tentam desmantelar o esquema.
A acusação? Lojistas do Mercado Municipal estão enganando clientes e vendendo sanduíches com ingredientes que não são os da marca anunciada, no que ficou conhecido como o golpe da mortadela.
Ele vem na sequência do golpe da fruta, aplicado no mesmo local, e se junta a uma infinidade de estratagemas que ameaçam a população diariamente, do golpe do Pix ao golpe do falso sequestro.
Em paralelo ao temor crescente, parece aumentar também o interesse do público por ver gente sendo enganada, como indica uma recente onda de séries e filmes sobre fraudes famosas que invadiu o streaming, puxada por “Inventando Anna” e “O Golpista do Tinder” –sucessos também nas redes sociais.
Ambas são hoje a série e o filme em inglês de maior audiência da Netflix e estão no topo do ranking em 88 e 94 países, respectivamente. Foram mais de 77 e 64 milhões de horas que os espectadores dedicaram às tramas nas últimas duas semanas, também nesta ordem.
“Inventando Anna” é uma ficção inspirada na história real de Anna Sorokin, ou Anna Delvey, uma russa que enganou a elite nova-iorquina dizendo que era uma herdeira alemã, com um fundo de EUR 60 milhões em seu nome. Ela se hospedou em hotéis cinco estrelas e não pagou, passou cheques sem fundo, pegou empréstimos falsificando documentos e mentiu para diversos poderosos, que bancaram seus luxos sob a crença de que ela estava com problemas burocráticos para movimentar sua fortuna.
A Netflix pagou cerca de U$ 320 mil, ou R$ 1,6 milhão, à agora condenada e na fila para a extradição Anna Sorokin, para poder contar a sua história, que também será objeto de uma série da HBO. Ela ainda apareceu em “Generation Hustle”, nova série documental que, a cada episódio, reconstrói um golpe famoso, como o de um vigarista que se passava por produtor de Hollywood para enganar jovens atores e o de um falso príncipe saudita.
“O Golpista do Tinder” é um pouco mais relacionável, já que as vítimas aqui não foram socialites e magnatas de Wall Street, mas mulheres que estavam em busca do amor no Tinder, aplicativo de namoro amplamente difundido.
No documentário, entendemos como o israelense Simon Leviev se passava por milionário, viajava com seus “matches” em jatinhos particulares e as convencia a pegar empréstimos para depois sumir do mapa com o dinheiro. Na semana passada, ele contratou uma agente de Hollywood para tirar uma graninha de sua recém-conquistada fama.
Diretor no Núcleo Forense e no Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo, Antonio Serafim explica que qualquer um está sujeito a ser vítima de um golpe, por mais distantes que sejam as realidades sócio-econômicas e culturais nas tramas citadas –então não adianta criticar as enganadas apaixonadas de “O Golpista do Tinder”, porque qualquer um poderia cair na lábia de Leviev.
“O golpista, geralmente, é um indivíduo que tem baixa resposta de ansiedade e uma alta capacidade de controle, o que o torna uma pessoa com habilidade de convencimento muito grande. Outra característica é que ele é um grande identificador de reações nos outros, então ele ajusta o processo conforme o golpe se desenrola”, diz Serafim.
“E a vítima normalmente tem um potencial de vulnerabilidade. Quando eu digo isso eu não me refiro a ser idoso, por exemplo. A vulnerabilidade pode ser uma ambição, se julgar mais qualificado intelectualmente. A gente não tem imunidade para isso, qualquer um pode cair.”
O fato de sermos todos vítimas em potencial dos mais variados golpes ajuda a explicar o motivo para que séries e filmes sobre o tema estejam fazendo tanto sucesso. Há certa curiosidade em entender como estratagemas do tipo funcionam, a fim de se blindar ou de frisar que aquilo é errado, reforçando crenças e valores.
Segundo Serafim, a onda de ficções e documentários sobre fraudes também acontece porque essas tramas funcionam como válvulas de escape. Todos nós temos que “conciliar desejos com o conceito de moralidade e as regras da nossa sociedade”, explica ele, que diz ainda que todos temos impulsos relacionados a receber prazer, a levar vantagem, a querer se dar bem -embora nem todos cedam a esse ímpeto. É uma lógica parecida com a que está por trás do sucesso de programas policiais.
“Mas é diferente do cara que comete um crime violento, porque isso causa repulsa, reforça que jamais faríamos isso, enquanto um cara que aplica um golpe gera uma dupla interpretação, que inclui certa admiração, porque são sujeitos superiores, espertos. Nos levam a questionar se teríamos essa capacidade”, afirma.
No caso de “Inventando Anna”, muitos nas redes sociais têm aplaudido a golpista, já que ela tirou dinheiro de uma elite imersa numa bolha de luxo, que se julga intelectualmente superior e que está distante dos problemas do cidadão comum, blindada dos efeitos de crises financeiras como a que a Covid-19 causou.
É um efeito parecido com o dos recentes documentários “Fyre: O Festival que Nunca Aconteceu” e “Fyre Festival: Fiasco no Caribe”, sobre um festival de música que prometia uma festança exclusiva para ricaços, regada a champanhe e adornada por paisagens paradisíacas. Eles pagaram entre US$ 1.000 e US$ 12 mil -entre R$ 5.000 e R$ 60 mil na cotação atual- pelos ingressos e tiveram que dormir em colchões molhados e se alimentar de sanduíches de queijo.
Também se assemelha ao sucesso do filme “As Golpistas”, em que Jennifer Lopez e Constance Wu viveram strippers empoderadas que enganavam acionistas de Wall Street, que gastavam quantias obscenas com bebidas e mulheres em meio à crise financeira de 2008.
O fetiche em ver gente poderosa ser feita de trouxa também ajuda a explicar o interesse pelas histórias da WeWork, empresa destinada a espaços compartilhados de trabalho, e da Theranos, do ramo de saúde e tecnologia, que queria revolucionar a testagem de sangue. Seus fundadores conseguiram investimentos milionários no Vale do Silício, polo de tecnologia americano onde gente como Elon Musk e Mark Zuckerberg põe seus dólares.
Ambos os casos já ganharam documentários -“WeWork: Or the Making and Breaking of a $47 Billion Unicorn” e “A Inventora: À Procura de Sangue no Vale do Silício”- e agora se preparam para virar séries de ficção estreladas, em “WeCrashed”, que tem os oscarizados Anne Hathaway e Jared Leto no elenco e deve ser lançada em 18 de março, e “The Dropout”, com Amanda Seyfried, prevista para 3 de março.
“Para muita gente, a Anna Sorokin e outros golpistas dessa linha enganaram quem explora as pessoas e isso faz o público se sentir realizado e representado. É um fenômeno parecido com o de ‘La Casa de Papel’. Existe aí uma resposta emocional de prazer, o que diminui a qualidade discriminatória. A sociedade tem muito essa necessidade de buscar heróis, e o streaming se aproveita disso. Só precisamos tomar cuidado para que não vire uma idolatria cega, sem crítica”, diz Antonio Serafim.
A lista de conteúdos inspirados em outras fraudes famosas não para. “O Crime do Século”, “Mestres da Enganação”, “Educação Americana: Fraude e Privilégio” e “De Rainha do Veganismo a Foragida” são alguns títulos do streaming ainda inéditos ou lançados ao longo do último ano.
Até no Oscar os golpistas chegaram, com “Os Olhos de Tammy Faye”, filme sobre a ascensão e queda dos televangelistas Tammy Faye e Jim Bakker, este condenado por inúmeras fraudes. Na vida real e também nas telas, o vigarismo está em alta.