SPFW começa com desfile que funde arquitetura e folclore na Pinacoteca
Como nômades em busca do desconhecido, os modelos vestiam uma espécie de look expedicionário, de viés utilitário, com bolsos, folga e amarrações expansíveis, tudo tingido pelo monocromatismo em branco, variações de cinza e verde esmaecido.
Entra temporada, sai temporada, estilistas brasileiros se digladiam na tentativa de traduzir em roupas a versão do tipo exportação da cultura popular brasileira. Muita linha já foi gasta tentando conjurar o que seria o novo luxo para um jovem afeito à moda urbana, mas cansado do mesmo combo de moletom e tênis das vitrines. Pedro Andrade quis dar uma resposta.
A estreia da grife homônima conduzida por ele e sua mulher, a também estilista Paula Kim, fundiu referências da arquitetura brasileira a um estudo minucioso de pesos, recortes e estampas quase imperceptíveis no primeiro dia da São Paulo Fashion Week.
Entre as paredes de uma Pinacoteca tomada pela instalação encomendada a Tom Escrimin, em que blocos de rocha adornados com desenhos rupestres e entremeados a uma vegetação nascente simulam um recôndito intocado do país, os modelos exibiram a pesquisa de dois anos da dupla.
Como nômades em busca do desconhecido, os modelos vestiam uma espécie de look expedicionário, de viés utilitário, com bolsos, folga e amarrações expansíveis, tudo tingido pelo monocromatismo em branco, variações de cinza e verde esmaecido. Mas são os detalhes que revelam além do campo de visão.
As amarrações que parecem saídas do corselet feminino são releituras das cordas usadas pela italiana Lina Bo Bardi em sua linha de cadeiras criadas no final dos 1940 para a Fábrica de Móveis Pau-Brasil.
Menos conhecida do que o modelo “bowl” de sua autoria, a peça, dobrável, adornou o auditório do Masp quando ele ainda se localizava na rua 7 de Abril, miolo central da cidade.
O tricô vazado que cobre o torso é a cópia tecida dos desenhos de Oscar Niemeyer para o Palácio da Alvorada, numa união de matemática e técnica têxtil usada em favor de uma visão fashionista.
Os losangos são combinados a uma bermuda de alfaiataria, num resgate da arquitetura modernista de aliar a estética em prol da busca incessante por funcionalidade.
As curvas do Pedregulho, o conjunto residencial fincado no Rio e desenhado por Affonso Eduardo Reidy, ganham corpo num suporte enrolado na cintura que prende a coluna –no caso da coleção, a vertebral, claro– numa sutil referência ao corpo como um prédio funcional e de beleza complexa. A versão de luxo criada por essa grife encontra em Mendes da Rocha, herói de Pedro Andrade e arquiteto responsável pela Pinacoteca, seus fundamentos.
O rigor das linhas, a beleza etérea e a simplicidade brutal, assim como os tênis, as capas matelassadas e os paletós cuja beleza está nos forros costurados com linhas aparentes, os debruns, iluminam a verborragia silenciosa da coleção, que diz muito sem mostrar quase nada.
Telas de seda e tinta descolorida quase escondem as raras estampas, desenhadas pelo artista plástico Walmor Corrêa. Elas ilustram contos do imaginário popular, a exemplo de uma sereia, que pode ser lida como Iara, a lenda das águas amazônicas hoje fustigadas pelas cinzas do fogo e que, na roupa, aparece dissecada com os órgãos para fora. Pura natureza morta.
Os pés invertidos do Curupira, a entidade das matas, ilustram a parte de baixo de calças leves, como se transformassem quem as veste no ser pronto para o combate a quem ameaça a floresta. Nenhuma relação com a urgência climática é coincidência.
Do ponto de vista sustentável, a coleção é um banho de pesquisa têxtil, como o tecido de cacto que simula o couro e, produzido por dois irmãos artesãos no México, serve de base para os calçados. A seda, brasileira, e o algodão, importado, parecem prontos para as lojas de luxo internacionais.
É que assim como aconteceu com os ícones do design homenageados na coleção, Andrade acredita que é fora do país que encontrará público disposto a desembolsar quatro dígitos por suas peças.
À reportagem, ele diz que está em tratativas para levar a coleção às multimarcas que já vendem as peças de sua outra marca, a Piet, famosa entre os amantes do streetwear.
“Queria experimentar mais, traduzir sobriedade e alfaiataria tecnológica em uma roupa que não seria absorvida pela Piet. Essa marca é mais sobre sensações, texturas e silhuetas”, explica Andrade.
As sensações, porém, só serão disponibilizadas por aqui no mercado online, no site da marca e na plataforma Iguatemi 365, que garantiu exclusividade para a venda. Ao que parece, “o Brasil não visto”, como o texto do desfile define o tom do cenário e da própria apresentação, continuará restrito e desconhecido para a maioria dos brasileiros.